Uma proposta do Ministério da Defesa russo para ampliar unilateralmente a fronteira marítima da Rússia no leste do Mar Báltico foi excluída, nesta quarta-feira, de um portal oficial após gerar confusão e preocupação entre membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), com a Lituânia convocando o representante diplomático de Moscou em Vilnius para prestar “uma explicação completa” sobre o caso. Moscou também foi acusado de dar início a uma “campanha de guerra híbrida” na região.
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De acordo com a minuta de decreto publicada no portal jurídico do Kremlin na terça-feira, a Rússia quer revisar os limites existentes — estabelecidos em 1985 entre o Reino da Suécia e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) — alegando ser baseada em cartas náuticas de meados do século XX que não correspondem totalmente às coordenadas cartográficas mais modernas.
A fronteira atual "não permite o estabelecimento do limite externo das águas internas da Rússia e não leva em conta a prática de estabelecer linhas de base diretas por outros Estados", dizia o decreto, acrescentando que a mudança, planejada para entrar em vigor em janeiro de 2025, era necessária porque as coordenadas atuais "não correspondem totalmente à situação geográfica atual".
O material, no entanto, foi deletado do site nesta quarta-feira. Uma mensagem dizia simplesmente: "A proposta foi excluída". O Ministério da Defesa foi procurado pela Reuters, mas não se manifestou. Também não ficou imediatamente claro na proposta original do decreto como exatamente a fronteira poderia ser ajustada e se houve ou não alguma consulta com outros Estados adjacentes ao Mar Báltico — segundo o presidente finlandês, Alexander Stubb, que supervisiona a política externa do país, "a Rússia não havia entrado em contato com a Finlândia sobre o assunto".
De acordo com o site Politico, a redefinição das coordenadas geográficas no Báltico faria com que Moscou declarasse as áreas marítimas da Finlândia e da Lituânia como russas, alterando também as divisas na região mais ocidental de Kaliningrado e no leste do Golfo da Finlândia.
Guerra híbrida
A Lituânia convocou o representante diplomático de Moscou em Vilnius “para uma explicação completa” sobre o caso, segundo o Ministério das Relações Exteriores, alertando nesta quarta que a medida poderia ser parte de uma campanha de guerra híbrida — estratégia militar que mescla táticas de guerra política, convencional, irregular e ciberguerra com outros métodos de influência, tais como desinformação.
A ministra das Relações Exteriores da Finlândia, Elina Valtonen, por sua vez, disse aos repórteres que Helsinque estava "acompanhando a situação" e que não tem “nenhuma informação oficial sobre o que a Rússia está planejando”.
— A Federação Russa também é membro e parte da Convenção da ONU sobre fronteiras marítimas. Esperamos apenas que a Rússia respeite essa convenção — disse Valtonen, após comentar na rede social X (antigo Twitter) que “deve-se lembrar que causar confusão também é uma forma de influência híbrida” e que “a Finlândia não se deixará confundir”.
O ministro das Relações Exteriores da Lituânia, Gabrielius Landsbergis, concordou:
"Outra operação híbrida russa está em andamento, desta vez tentando espalhar o medo, a incerteza e a dúvida sobre suas intenções no Mar Báltico", escreveu Landsbergis no X.— “Essa é uma escalada óbvia contra a Otan e a UE [União Europeia] e deve ser enfrentada com uma resposta adequadamente firme.
Uma declaração do Ministério das Relações Exteriores da Lituânia também "pede que a Federação Russa respeite e cumpra os princípios e normas universalmente reconhecidos do direito internacional, em particular a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar".
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse aos repórteres em uma entrevista coletiva nesta quarta-feira que não havia "nada de político" na ação, "embora a situação política tenha mudado muito desde 1985", ano em que as águas territoriais russas foram demarcadas.
— Você pode ver quão alto é o nível de confronto no momento, especialmente na região do Báltico. Isso exige que os órgãos apropriados tomem as medidas adequadas para garantir nossa segurança — declarou.
Expansão da Otan
Para Igor Lucena, economista, doutor em relações internacionais e CEO da consultoria de riscos geopolíticos Amero Consulting, "não há dúvidas de que essa proposta que foi colocada na mesa e depois retirada é uma provocação".
— A entrada de Suécia e Finlândia na Otan foi radical do ponto de vista russo ao colocar basicamente todo o mar Báltico dentro da Otan, deixando a Rússia — afirma. — O que nós estamos assistindo é mais uma provocação, difícil de se tornar realidade neste momento. Acho que a Rússia não teria capacidade de abrir um conflito de redefinição de fronteiras marítimas e, obviamente, iria encontrar resistências militares dos outros países do Mar Báltico, principalmente Finlândia e Suécia.
A adesão da Suécia à Otan, em março, pôs fim a dois séculos de não-alinhamento oficial e mais do que dobrou a fronteira entre a Rússia e o Ocidente, garantindo assim à aliança militar ocidental liderada pelos Estados Unidos o controle de praticamente toda a costa do Mar Báltico, com exceção do enclave de Kaliningrado e da costa russa, onde se localiza São Petersburgo, ponto de partida de exportações de gás e petróleo. Um ano antes, em março de 2023, a Finlândia também finalizou seu processo de entrada na organização.
— Considerando o contexto histórico e geopolítico, essas ações tem uma visão muito clara — acrescenta Lucena. — O objetivo do presidente Vladimir Putin é encontrar pretextos históricos e sociais para tentar retomar espaços clássicos ou espaços históricos da antiga União Soviética. Então, se ele puder desestabilizar e retomar territórios como Estônia e Letônia ou até mesmo, de alguma maneira, fazer com que o Kaliningrado se torne um pretexto para um ataque dentro do continente europeu, ele o fará.
O Báltico é um dos mares mais movimentados do mundo, com uma média de 1,5 mil embarcações trafegando por dia em suas águas, de acordo com a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (Osce), e só há uma saída: o Mar Kateggat, entre a Dinamarca e a Suécia.
Direito do Mar
Desde 1982, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar estabelece, entre outros aspectos, que todos os Estados costeiros têm direito a 200 milhas náuticas de Zona Econômica Exclusiva (ZEE), o que na prática significa permissão para explorar os recursos vivos e não-vivos das águas e do subsolo de uma área que se estende por cerca de 320 km em linha reta a partir da costa.
No entanto, embora tenha servido de base para organizar a soberania dos países nos mares, o documento da ONU, que vigora desde 1994, “pouco fez para ajudar a resolver o problema que surgiu como consequência: as reivindicações marítimas sobrepostas e disputas de limites entre os Estados”, pondera Andreas Østhagen, professor associado de Relações Internacionais no Fridtjof Nansen Institute da Noruega, em artigo de 2021.
Segundo especialistas, cerca de 40% de todas as fronteiras marítimas do mundo ainda hoje são disputadas — 180 das 460 fronteiras em mares e oceanos possíveis no planeta estão no centro de controvérsias entre dois ou mais países. (Com AFP)