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Por Lucas Ferraz, especial para O Globo — Roma

Homem cheio de manias, Silvio Berlusconi não se importava com a higiene — uma de suas tantas obsessões — quando resolvia tomar “banho de povo”. Cumprimentava efusivamente, com indisfarçável prazer, correligionários e apoiadores que se reuniam para vê-lo em eventos públicos. Costumava usar as duas mãos, como ressaltou um antigo observador, e quase sempre perguntava após saudar os presentes, fossem eles dezenas ou centenas: “Onde estão os outros?”

Este era um dos muitos e variados Berlusconis, conforme o próprio personagem gostava de dizer no tom sedutor e carismático que caracterizou seus 86 anos de vida, encerrada nesta segunda-feira.

Havia o homem que revolucionou a televisão comercial na Itália e na Europa, o que fez história no mercado publicitário, o que imprimiu um novo conceito de empresário, o dono de time de futebol vitorioso e o que mudou para sempre a política, o que só foi possível graças à fusão de todas a suas facetas.

Sua morte encerra – aparentemente – uma estranha peculiaridade na Itália das últimas duas décadas: um contínuo escrutínio sobre o corpo de Berlusconi. Do coração à próstata, passando pelas intervenções estéticas às preferências sexuais, o corpo do político virou parte do debate público, quase sempre estimulado por seu dono.

Com seu desaparecimento, ninguém duvida que o mito do bilionário que virou o premier mais longevo da Itália se tornará eterno.

Berlusconi ficou ao todo nove anos e um mês no cargo de primeiro-ministro, sendo o político que mais tempo comandou a Itália após a queda do regime fascista com a Segunda Guerra Mundial (1939-45). “Sou o número um”, repetia ele.

Seu governo se dividiu em três períodos: o primeiro, por oito meses, ao ser eleito pela primeira vez em 1994 logo após a Operação Mãos Limpas derrubar o sistema político do país; o segundo, por quatro anos e 11 meses na sua segunda passagem pelo poder, entre 2001 e 2006; e o terceiro, entre 2008 e 2011, quando seu governo durou três anos e seis meses.

O magnata também foi senador, primeiro entre março e novembro de 2013, quando teve seus direitos políticos cassados por uma condenação por fraude fiscal envolvendo sua empresa de mídia, a Mediaset. Em 2019, no entanto, quando sua inelegibilidade expirou, voltou à política como deputado do Parlamento Europeu. E no ano passado, às vésperas de completar 86 anos, foi eleito novamente para o cargo de senador.

Na Itália, todos — analistas políticos, jornalistas, inimigos e partidários — se referem às duas décadas de berlusconismo, período que vai além de seu tempo como chefe de governo e que é comparável à influência de Benito Mussolini, fundador do fascismo e que reinou por quase o mesmo tempo.

— Berlusconi é um dos verdadeiros capos italianos, como foi Mussolini — afirma o jornalista Filippo Ceccarelli, que montou um dos maiores arquivos da política italiana, cedido à biblioteca da Câmara dos Deputados, e lembra de ter se divertido muito acompanhando-o no poder.

Ceccarelli ressalta que Berlusconi era um rei — “ele mesmo se via assim” — com sua própria corte, palácio, jornalistas, capelães, bufões, poetas, juízes e mulheres.

Imaginário nacional

Cantado em músicas, abordado em filmes e peças de teatro, Berlusconi entrou para o imaginário nacional e sua figura tornou-se internacional. O populismo e a antipolítica representados por ele desde a década de 1990 tornaram-se aspectos globais, ainda hoje uma marca em muitos países.

Alvo de mais de 60 processos ao longo da vida, de crimes que vão de corrupção, prostituição de menores à associação com a máfia, ele conseguiu se desvencilhar de quase todos, sendo condenado por fraude fiscal (como Al Capone). Citado nos desdobramentos da Mãos Limpas, conseguiu escapar das acusações (apesar de seu irmão ter sido preso) e se colocou para renovar a política após a terra arrasada provocada pela operação que influenciaria anos depois a Lava-Jato no Brasil.

Sua atuação fez com que estudiosos apontassem a Itália como uma espécie de laboratório político contemporâneo, e não somente da Europa. Empresário de sucesso, bem relacionado com a classe política, artística e intelectual, ele representava uma linhagem liberal que predominava no mundo no final do século XX, cujas referências eram o americano Ronald Reagan e a britânica Margaret Thatcher. A política do Estado mínimo encontrou nele, crítico feroz do “estatismo”, um grande defensor.

Sua entrada na política representou um choque num país que sentia o peso de rupturas como a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Ao contrário dos demais partidos e líderes da época, que representavam uma ideologia (socialista, liberal, direita-católica, etc), Berlusconi era a própria ideologia, conta Ceccarelli, “um autodidata que construiu sua política”.

No livro “Invano”, publicado em 2018 e que aborda o poder na Itália no pós-guerra, o jornalista escreve que Berlusconi é um mito que merece a maiúscula: “O Mito se baseia também num acúmulo desconhecido de fantasias, de teorias sem fundamento, mistificações, conspirações, recordes fragmentados, ajustados, inventados, e definitivamente não se entende nunca o que é verdade e o que é inventado”.

De cantor de cruzeiro a rei do entretenimento

Primeiro de três irmãos, Silvio Berlusconi nasceu em Milão em 29 de setembro de 1936, numa família da pequena burguesia do norte italiano. Seu pai, Luigi, era funcionário de um banco milanês que ficaria conhecido por guardar (e reciclar) o dinheiro de mafiosos. Sua mãe, Rosa, dedicou-se ao lar após ser secretária da Pirelli e teria um papel fundamental em sua vida, sendo a sua principal referência.

Quando se formou em Direito, em 1961, Berlusconi já tinha começado a desenvolver atividades que marcariam sua vida política e empresarial: foi cantor e animador de um cruzeiro (também cantou num cabaré em Paris), guia turístico e vendeu aspirador de pó em domicílio.

Esperto e ambicioso, Berlusconi se lançou no mercado imobiliário graças a um generoso empréstimo feito pela instituição financeira onde trabalhava o pai. Depois, fundaria a própria construtora, aproveitando o boom econômico italiano dos anos 1960 para ficar milionário. Ele construiu cidades-satélites ao redor de Milão, início do mito do homem que, além de criar cidades, seria responsável no futuro por refundar a TV, um time de futebol e a política.

Ao longo dos anos, muito se especulou sobre a origem dos recursos que deram o pontapé em sua vida empresarial. A acusação era de se tratasse de dinheiro da máfia, como mostrou o documentado “My Way”, produzido pelo jornalista Alan Friedman. Como tudo na vida de Berlusconi relacionado à máfia, faltaram provas para tal comprovação (apesar da abundância de ligações suspeitas e colaboradores mafiosos).

No final dos anos 1970, quando recebe da presidência italiana o título de “Cavaliere do Trabalho” (que viraria um complemento de seu nome), Berlusconi já tinha um império, com seus negócios dependendo em grande medida de autorização ou participação do Estado – o que estreitou seus laços com a política.

No final daquela década, sua holding, a Fininvest, criou a Mediaset, emissora que revolucionou a TV comercial na Itália e, em menor medida, em países como Espanha e França. É o início de sua carreira mediática, expandindo os negócios para diferentes ramos como editora, cinema, jornal, teatro e até banco. Berlusconi teria grande influencia no marketing político, introduzindo técnicas da TV no jogo político-partidário quando isso ainda não era comum.

— Ele foi símbolo da ruptura da TV como instrumento de política pública. Houve com ele o início da TV como lugar onde se pode escolher, um instrumento de liberdade. Sem falar na americanização da programação e dos costumes. Ele era um símbolo dos anos 80, sem escrúpulos, mas popular — afirma o cientista político Giovanni Orsina.

Quando Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, em 2016, muitos o compararam ao italiano, mas Orsina diz que não há nada em comum entre eles, a não ser o fato de serem bilionários e populistas.

— Berlusconi nunca iria propor um muro. Muito pelo contrário, ele era o homem das oportunidades.

O magnata italiano financiou por anos partidos como a Democracia Cristã (que dominou a cena política no pós-guerra) e o Partido Socialista Italiano de seu amigo Bettino Craxi, que foi primeiro-ministro entre 1983 e 1987. As duas siglas acabaram com a Mãos Limpas. Uma das condenações que Berlusconi sofreu (depois revertida), ainda no final dos anos 1990 e na esteira da investigação, diz respeito aos estimados US$ 12 milhões (valores da época) de contribuição para o Partido Socialista.

Craxi também foi beneficiado na TV de Berlusconi. Em troca, o ajudou a expandir seus negócios de mídia e o socorreu em momentos críticos. Alvo da Mãos Limpas, o socialista morreu no exílio na Tunísia após deixar a Itália para fugir da prisão.

Relação com o futebol

E havia ainda o Silvio Berlusconi boleiro. Em 1986, ele comprou o Milan, clube no qual foi presidente até 2017, quando o vendeu para um empresário chinês. Em 31 anos, o Milan conquistou diversos títulos italianos, europeus (cinco vezes a Champions League, principal torneio da Europa) e mundial.

O futebol, claro, se misturava à política. Em 2008, quando recebeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então em seu segundo mandato, – ambos se deram bem juntos – em uma viagem a Roma, Berlusconi levou todos os jogadores brasileiros que estavam no Milan à época (Ronaldinho Gaúcho, Dida, Kaká, Alexandre Pato, Emerson) para recepcioná-lo.

Em 2018, seu grupo voltou a comprar outra equipe de futebol, o pequeno Monza, atualmente na série B do futebol italiano.

— Com o futebol ele se torna um emblema, uma espécie de herói público, um elemento de identificação nacional. Além de ter se consolidado como um modelo do empresariado da estatura de um Agnelli (criador da Fiat) ou Ferrari (da marca homônima) — ressalta Orsina.

O Força Itália, partido que Berlusconi criou para se lançar na política e que comandaria até o final da vida, foi batizado com uma expressão tipicamente futebolística — como “Força Milan” ou “Força Inter”.

Além do legado político, haverá agora uma expectativa sobre a divisão da herança. Em 2021, ele foi considerado pela revista Forbes o sexto homem mais rico da Itália, ocupando a posição de número 318 no mundo. O patrimônio é estimado em US$ 7,3 bilhões.

Berlusconi deixa cinco filhos de dois casamentos (não se sabe de outros herdeiros, ao menos até agora) e um patrimônio vastíssimo, com imóveis como uma vila no sul da França, onde ultimamente passava parte do tempo, outra vila na ilha da Sardenha, na Itália, e um palácio nos arredores de Milão (famoso por sediar as festas sexuais) que tem 72 cômodos.

A política, finalmente

Quando Berlusconi decidiu entrar na política, no final de 1993, a Operação Mãos Limpas (iniciada no ano anterior) havia deixado o sistema político na lona. O vácuo que se abriu foi determinante para sua eleição.

Em janeiro de 1994, como candidato, ele disse: “Decidi me ocupar da coisa pública porque não quero viver em um país iliberal governado pelas forças imaturas e por homens ligados a fios duplos, com um passado política e economicamente falidos”.

Berlusconi foi eleito em março numa coalizão formada por partidos de direita. Um dos aliados era o Movimento Social Italiano, sucessor daquele que foi o maior grupo neofascista da Europa no pós-guerra. Era a primeira vez desde o fim do fascismo que partidários declarados do movimento voltavam ao governo.

Muitos creditam ao político a vazão dada no país a grupos neofascistas. Segundo o historiador Emilio Gentile, um dos principais estudiosos do fascismo, os anos Berlusconi marcam uma “indiferença” com a festa da liberação, que todo 25 de abril recorda o fim da ocupação nazista na Itália.

Para cientistas políticos, sua força eleitoral estava na capacidade de representar a sociedade italiana tal como ela é, com um misto de atraso, tradicionalismo e antipolítica. Conforme observa Giovanni Orsina no livro “O berlusconismo na história da Itália”, o político foi coerente ao relacionar o mito da sociedade civil a um programa de direita que ele não teve medo de encarnar.

Berlusconi soube utilizar como poucos o anticomunismo para firmar-se nacionalmente, o que não foi pouco num país que teve o maior Partido Comunista do Ocidente. Também manejou bem a postura anti-intelectualista, criticando os intelectuais que ficaram “embaixo da bandeira vermelha” enquanto o “povo trabalhador e tenaz” reconstruiu a Itália após a Segunda Guerra Mundial.

Após o primeiro governo encerrado prematuramente, muito por causa das suspeitas levantadas na Mãos Limpas contra ele e o irmão, Berlusconi retornou em 2001 para aquele que foi considerado seu melhor momento como primeiro-ministro. Construiu boas relações no plano internacional, aproximando-se de nomes como George W. Bush, Vladimir Putin e Muamar Kadafi.

O terceiro e último período como chefe de Estado, entre 2008 e 2011, coincidiu com a crise financeira iniciada nos EUA e que afetou enormemente a zona do euro. Foi aí que a fama de bufão e os escândalos sexuais começaram a afetar sua imagem e desgastaram a relação com os pares europeus, além protagonizar incontáveis gafes – como fazer chifrinho em colegas durante fotos de encontros multilaterais.

Em 2009, sua segunda mulher, Veronica Lario, com quem teve três filhos, anunciou publicamente o divórcio ao dizer que “não poderia estar com uma pessoa que tinha o hábito de frequentar menores de idade”. Logo surgiram casos de bailarinas, prostitutas e aspirantes à política que frequentavam o primeiro-ministro. O ápice foi o chamado caso Ruby, que ganhou as manchetes de todo o mundo por causa dos detalhes picantes.

O escândalo foi batizado com o nome de Ruby Rubacuori, marroquina que participava das orgias e festas promovidas por Berlusconi em um dos seus palácios. Além de ser acusado de indução à prostituição de menores, soube-se que o então primeiro-ministro (em maio de 2010) telefonou pessoalmente para uma delegacia de Milão onde estava Ruby, à época menor de idade e detida sob acusação de furto, para pedir sua soltura. Justificou a pressão com uma mentira: disse ser ela sobrinha de Hosni Mubarak, ex-ditador do Egito, e que evitava uma crise diplomática.

— Essa é parte da comédia berlusconiana — afirma Filippo Ceccarelli. — Ele é italianíssimo por usar tão bem esses elementos que criamos, a comédia e o melodrama.

No documentário “My way”, sobre a vida de Berlusconi, conta-se que alemã Angela Merkel e o francês Nicolas Sarkozy fizeram de tudo para que o italiano deixasse o cargo de primeiro-ministro, já que a credibilidade era essencial para a recuperação econômica na zona do euro.

Escândalos e o declínio final

Silvio Berlusconi é um dos nomes mais citados nos trabalhos acadêmicos sobre corrupção na Itália nos últimos 25 anos. Ele sempre demonstrou talento para esquivar-se das acusações na Justiça, muitas vezes evitando depoimentos com internações ou receitas médicas, além de sorrir sempre, mesmo diante das questões mais espinhosas.

No início de 2021, ao responder à acusação de comprar testemunhas no processo do caso Ruby, ele reclamava que havia “muita infiltração ideológica entre os togados”, crítica repetida desde os tempos da operação Mãos Limpas.

Na última década, além de continuar a responder pelos muitos crimes nos quais era acusado, o italiano viu inevitavelmente o declínio, apesar de ter mantido certa influência no debate político no campo da direita.

Condenado em 2013 a quatro anos de prisão por fraude fiscal, ele chegou a cumprir uma pena alternativa realizando serviço social por 10 meses. Eleito senador em março de 2013, perdeu o mandato no final daquele ano após decisão da Justiça. Também abandonou o título de “Cavaliere do Trabalho” e não pôde mais se eleger para cargo público.

Como muitos analistas observaram, a decadência do político ficou evidente após ele se aliar a dois nomes da extrema direita como Matteo Salvini (Liga) e Giorgia Meloni (Irmãos da Itália), que comanda a atual coalizão tripartite que governa a Itália. Berlusconi, ao contrário dos dois, sempre defendeu a União Europeia.

Sua saúde vinha dando sinais de fragilidade desde 2016, quando precisou realizar uma delicada cirurgia no coração para substituir uma válvula na aorta. Em setembro de 2020, infectou-se com o coronavírus, sendo internado no início do ano seguinte para cuidar, segundo os médicos, de complicações provocadas pela Covid-19.

Com seu desaparecimento, ressalta o cientista político Giovanni Orsina, vai-se embora um pedaço da história do final do século XX.

— Ele simbolizou aquele tempo.

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