O movimento na Praça do Parlamento, no centro da capital britânica, começou cedo na última sexta-feira. Fazia 1°C apenas. Mas o calor da causa parecia aquecer os milhares de carteiros e carteiras que chegavam de várias partes do país para protestar. Eles inauguram uma onda de greves como não se vê no Reino Unido desde o período que ficou conhecido como o “Inverno da insatisfação”, no final da década de 1970.
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Durante praticamente todos os dias até o fim do mês, as mais variadas categorias — de enfermeiros e motoristas de ambulância a funcionários de ferrovias, ônibus, professores, policiais de fronteira e até fabricantes de caixões — devem cruzar os braços. A previsão é de 560 mil dias de trabalho perdidos, o que representaria o pior ano para a produtividade da nação neste século.
Estima-se que os prejuízos à economia somem pelo menos 2 bilhões de libras, cerca de R$ 13 bilhões, o que só complica a situação deste país em recessão. Tudo isso no mês mais esperado do ano, numa sociedade em que as pessoas começam a falar em Natal, uma paixão nacional, em setembro.
— Nossa intenção não é criar o caos, nem prejudicar o natal de ninguém, nem o nosso. Estamos falando de categoria importante, gente que trabalhou sem cessar durante a pandemia e que enfrenta uma deterioração sem precedentes nas condições de trabalho — disse o carteiro Jim, ao ser perguntado como acha que a população que envia mais de um bilhão de cartões no final do ano reagirá ao movimento.
Insegurança no emprego
Por trás das greves estão demandas por reposição salarial sobretudo, o que não acontece há anos, e segurança no emprego. Os carteiros do Royal Mail explicavam temer os novos cortes de 6 mil postos previstos para agosto de 2023 e a substituição em curso de profissionais com carteira assinada por autônomos, ou “trabalhadores com contratos de zero hora de trabalho”, como são chamados os funcionários sem qualquer vínculo.
A mesma lista de reclamações vale para os professores universitários. Seus salários sofreram uma perda real de 25% nos 12 anos em que o Partido Conservador está no poder, segundo disse ao GLOBO Pippa Catterall, professora de História e Política da Universidade de Westminster.
— As pessoas estão muito aborrecidas. No início do ano, um quarto das universidades não queria greve. Agora, todas queriam. É o calor do momento. Ninguém mais aguenta. A inflação não vai ceder no curto prazo. Esses movimentos vão entrar por 2023 — disse Catterall.
Sem saber como pagar as contas de energia, que subiram 300% em menos de dois anos, trabalhadores assistem perplexos à queda do poder de compra de seus salários. Os índices de inflação se mantêm nos níveis mais elevados dos últimos 40 anos. Agora que as temperaturas despencaram, jornais e redes sociais tentam explicar como poupar energia sem passar frio dentro de casa. Muitos britânicos já avisaram que não pretendem ligar a calefação, o que preocupa o debilitado Sistema Nacional de Saúde, o NHS, que, antes mesmo de se recuperar da pressão de quase três anos de pandemia, enfrenta uma onda de gripe e novos casos de Covid.
Queda de braço
Sem saber como conter a insatisfação geral, o governo fala em acionar as Forças Armadas para evitar o caos com as greves no NHS, no controle das fronteiras nos principais aeroportos do país e do tráfego nas estradas. Neste momento, também discute uma lei que proíbe as paralisações em categorias consideradas chave.
— Não adianta demonizar os trabalhadores ou desmoralizá-los. É a velha tática de dividir para governar. Isso só torna os movimentos mais perigosos, como aconteceu no passado — afirmou Catterall.
A avaliação é de que não adianta endurecer mais as regras sobre greves se o governo não adotar medidas capazes de melhorar os serviços públicos. O NHS não tem conseguido dar conta das consultas e intervenções adiadas pela pandemia. Faltam-lhe braços, sobretudo depois que o Brexit levou milhares de médicos e enfermeiros europeus a deixarem o Reino Unido. O sistema ferroviário privatizado, um dos mais caros do mundo, tem cancelado cada vez mais trens e prejudicado os usuários, mesmo sem greve.
— Minha filha estava na estação de Slough desde 8h45 tentando ir para a City [centro financeiro de Londres] e ainda não conseguiu chegar. São 10h. Não pode cancelar a reunião. Tem 25 anos e acaba de conseguir esse emprego — disse Laura Langley, que trabalha numa concessionária em Slough, cidade-dormitório a 20 minutos da capital.
As autoridades alertaram a quem não tem compromissos inadiáveis nesta semana a não usar os trens, ainda que a paralisação só dure três dias. E que quem puder evitar avião na semana do Natal, que o faça.
Quando Thatcher veio
Na final da década de 1970, o Reino Unido já havia parado. A onda de greves, contudo, começou no setor privado, com a paralisação dos funcionários da Ford, no governo do conservador Edward Heath. Naquela época, a crise econômica era aguda pelos efeitos da inflação. E a maneira que o governo tinha de conter o índice de preços era limitar os reajustes salariais, algo parecido com o que o atual primeiro-ministro, Rishi Sunak, tem feito.
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Havia cortes de luz frequentes. Heath declarou estado de emergência cinco vezes. O descontentamento chegou ao auge entre novembro de 1978 e fevereiro de 1979, no governo do trabalhista de James Callagham, que acabou perdendo a cadeira para a conservadora Margaret Thatcher quatro meses depois. Em sua gestão, a Dama de Ferro reduziu o poder dos sindicatos. Em 1982, uma lei determinou que as greves teriam que ser aprovadas por 50% dos filiados a um sindicato, o que dificultou a sua realização. Mas, segundo Catterall, os sindicatos se fortaleceram na última década.
— Este é um sinal evidente da frustração geral.
Medo conservador
Em Maidenhead, 40 quilômetros a oeste de Londres, a caixa de uma grande rede de supermercados disse simpatizar com a causa dos grevistas, ainda que eles atrapalhem sua vida de todos os modos.
— Já tinha sido assim na década de 1970, quando cruzei os braços com outros colegas em apoio à greve dos mineiros pelas terríveis condições de trabalho que enfrentavam. Está tudo muito caro. A situação me lembra o que vivi naquela época — disse Sarah Lewis.
Ela não é a única. Pesquisa realizada pela Redfield and Wilton a pedido do tabloide trabalhista Daily Mirror, por exemplo, indica que 54% da população apoiam os dois dias de paralisação de enfermeiros em 15 e 20 de dezembro. Eles pedem reajuste de 5% acima da inflação.
As pessoas estão cansadas e tudo isso vai para a conta do partido da situação, no poder há mais de uma década. Os conservadores tentam evitar que a eleição geral, prevista para 2024, seja antecipada, como aconteceu na vitória de Thatcher. Após o “inverno da insatisfação”, os trabalhistas ficaram 18 anos fora do poder.