Há dez dias, no primeiro debate presidencial, Joe Biden teve desempenho tenebroso e, em alguns momentos, sequer conseguiu completar seu raciocínio. Pesquisas divulgadas em seguida radiografaram uma candidatura ferida seriamente pela percepção de que o político de 81 anos não tem mais capacidade de comandar o país. Quatro deputados democratas pediram sua substituição. Senadores do partido discutem intervenção na campanha. Uma governadora, a de Massachusetts, já pediu que ele reavalie sua decisão de concorrer.
Mas enquanto aliados e doadores se debruçam sobre um plano B capaz de derrotar o favorito Donald Trump, o presidente repetiu no fim da semana, em entrevista exclusiva de 20 minutos à rede ABC e em comícios, o mantra: “Não serei forçado a sair da disputa e vencerei em novembro”. A linha tênue entre resiliência e teimosia, presente em sua biografia, ajuda a explicar, apontam observadores da corrida à Casa Branca, a sinuca de bico dos governistas.
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— Após o debate, aumentaram tanto a vantagem de Trump quando a descrença dos eleitores de Biden, o pior cenário para o presidente. A única saída legal é ele abandonar a disputa por vontade própria. E se nos debruçarmos sobre sua trajetória, essa possibilidade, que era zero até o debate, não passa hoje de 25% — estima o especialista em legislação e campanhas eleitorais Will Thomas, professor da Universidade de Michigan.
Idade avançada
O democrata nasceu em Scranton, no nordeste da Pensilvânia. Em uma tarde de sol e céu azul na primavera no Hemisfério Norte, O GLOBO demorou exata uma hora e cinco minutos para encontrar, na Rua Joe Biden — no coração da cidade, rebatizada em sua homenagem em 2021 — um único entusiasta de sua reeleição. Três meses antes do debate, eleitores já enumeravam motivos para não declarar apoio ao mais ilustre detentor de uma certidão de nascimento emitida na cidade de 76 mil habitantes: custo de vida alto, medo da imigração não documentada e, à frente de todos, a idade avançada do presidente.
— Em 2020, votei nele para Trump não se eleger, e após a invasão do Capitólio tenho mais medo ainda de um avanço autoritário. Mas também é justo refletir sobre em que condições Biden estará aos 82, 83, 84 anos. E, mesmo sabendo que este ano a eleição pode ser decidida aqui na Pensilvânia, votarei em uma terceira opção à esquerda — disse a servidora pública Jennifer Spitler, de 41 anos.
Não é exagerada sua afirmação de que a eleição pode ser decidida no estado natal de Biden, onde ele estará neste domingo pela quinta vez desde as primárias. É praticamente impossível para os democratas chegarem aos 270 votos no Colégio Eleitoral sem os 19 da Pensilvânia.
Se o grosso dos eleitores das maiores cidades do estado, Filadélfia e Pittsburgh, engordam o flanco democrata, é nos subúrbios ricos e nos antigos enclaves operários em meio à zona rural, como Scranton, famosa na ficção sediar o escritório da pequena empresa de distribuição de papel da versão americana da série "The Office", que o pleito é decidido. Em um universo de 7 milhões de eleitores, Trump derrotou Hillary Clinton em 2016 por 44 mil votos. Perdeu para Biden quatro anos depois por 81 mil. Em Scranton, que tem prefeita democrata, o atual presidente expandiu um pouco a curta vantagem da ex-primeira-dama. Os republicanos acham que este ano será diferente.
De volta à Rua Biden, Olivia Smith, 19, que trabalha em um salão de beleza, pena para se conectar com os “candidatos vovôs”. E solta uma exclamação ao constatar que Biden nasceu na Scranton de 1942 (“cara, na Segunda Guerra!”):
— Será meu primeiro voto, só me registrei por pressão da vovó, fã de Biden. Idoso por idoso, pelo menos ele é daqui, quem sabe voto nele.
A idade de ouro de Scranton terminou nos anos 1950, quando o petróleo deixou obsoletas suas minas de carvão, e os postos de trabalho começaram a partir, sem volta, para a Ásia. A reinvenção como polo educacional foi lenta e o empobrecimento da população a tornou campo fértil para o populismo de direita. Os Biden migraram para o vizinho Delaware quando o futuro presidente tinha 11 anos. Lá, ele iniciou a carreira política, sem jamais deixar de lembrar em aparições públicas as origens 185km ao norte. O que se provou decisivo em 2020.
Dias decisivos à frente
A mística do “Joe de Scranton” foi importante há quatro anos para assegurar o voto de eleitores brancos de classe média baixa em estados decisivos da Muralha Azul, uma referência à cor do Partido Democrata. Os mais importantes endereços desse muro imaginário são, além da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. Seus eleitores abandonaram Hillary em 2016. Biden os reconquistou, mas está atrás de Trump em todas as sondagens pós-debate.
Há quatro anos, após visita à casa em que nasceu, o democrata fez, do gramado, discurso ainda lembrado, em oposição ao homem frágil, em voz e orientação do debate, por seu vigor e concisão. Pintou na ocasião Trump como um elitista de Nova York, inimigo da classe média e incapaz de ter empatia com os trabalhadores: “Scranton e sua resiliência entraram para sempre em meu coração.”
Resiliência, reconhecida por eleitores e detratores, fundamental para o político enfrentar duros reveses, entre eles a morte da primeira mulher e de dois filhos, dois aneurismas e a recente condenação de outro filho, Hunter, por omitir sua dependência química ao comprar uma arma. Característica que agora, no entanto, temem colegas de partido e doadores de campanha, pode ter se tornado combustível para a incapacidade de Biden e seu círculo íntimo de reconhecer o que muitos veem como a inviabilidade de sua reeleição. Teimosia.
Os próximos dez dias, que incluem a Cúpula da Otan, a partir de terça-feira, em Washington, e a Convenção Republicana, que começa no dia 15, no Wisconsin, serão, diz Will Thomas, “os mais decisivos da vida do Joe de Scranton”. O presidente precisará provar a aliados e eleitores que, como tem repetido, “o debate foi um dia ruim em três anos e meio de êxitos”. Mas o professor também atenta para uma ausência notável na procissão dos que pedem a renúncia de Biden: a militância.
Suprema Corte
Grupos com trânsito livre na Casa Branca, entre eles o Swing Left e o Occupy Democrats, reconheceram, como Biden, o desastre no debate. E buscaram na série de consequentes decisões da Suprema Corte, de maioria conservadora, anunciadas nos dias seguintes ao embate com Trump, a sobrevida imediata para a candidatura governista. A estratégia é martelar que o voto este ano ultrapassa o Executivo e pode significar, com o republicano e mais duas prováveis indicações vitalícias à Corte, mudanças profundas à direita na sociedade americana.
Sempre por seis votos conservadores contra três progressistas, a Corte decidiu, entre outras medidas controversas, que ex-presidentes são imunes a processos por atos oficiais. O republicano enfrenta na Justiça ações da Advocacia-Geral sobre a invasão do Capitólio e a tentativa de reverter o resultado na Geórgia, vencida por Biden em 2020 por 11.779 votos. Trump já avisou que as encerra imediatamente se eleito.
O texto da juíza Sonia Sotomayor, que, pela minoria, classificou a decisão como “chacota” da democracia, foi traduzido pela militância como prova de que, se eleito, o ex-presidente será ameaça ainda maior do que em 2016. Que Biden, ainda que duma sombra do ex-senador e vice-presidente capaz do firme discurso populista na grama de Scranton, é muito menos perigoso do que seu adversário três anos mais novo. Miram em 2022, quando a reação ao fim do direito ao aborto pela Corte ajudou os democratas em disputas nas eleições de meio de mandato em diversos estados.
— Mas é complicado transportar esta decisão para patamar concreto, como o aborto. Se Biden insistir em seguir na disputa, o único horizonte que vejo é ele bater na tecla da melhora da economia e provar aos eleitores, antes de novembro, que a inflação segue caindo e o poder de compra melhorou. Não será fácil—afirma Iam Bremmer, presidente da consultoria de risco Eurasia.