Eleições EUA
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Por — São Paulo

Ao contrário do Brasil, onde a maioria dos partidos políticos define seus candidatos por meio de processos restritos a líderes e filiados e os apresentam ao eleitorado já na condição de postulantes à Presidência, os Estados Unidos desenvolveram um sistema de consulta pública que permite aos eleitores opinar desde o primeiro momento na definição de quem disputará o controle da Casa Branca. As prévias — também chamadas de primárias por aqui — são a etapa inicial das eleições americanas e seguem regras tão específicas (e variadas) por Estado quanto a eleição geral, que neste ano será realizada em 5 de novembro.

As prévias são um processo longo — começam em 15 de janeiro, com o caucus republicano em Iowa, e se estendem até 8 de junho, com o caucus e a primária democrata em Guam e Ilhas Virgens, respectivamente — e quase idêntico a qualquer disputa por voto. Políticos fazem campanha, arrecadam verba e debatem propostas, enquanto tentam convencer os eleitores a se apresentar em uma data predeterminada para votar. A diferença é que, para os candidatos (pré-candidatos, no caso), a disputa é interna, seja no Partido Democrata ou no Partido Republicano. O vencedor no processo de cada sigla ganha o direito de ter seu nome na urna em novembro e só então disputar de fato a Presidência.

— As primárias permitem que o eleitor conheça melhor os pré-candidatos antes da eleição. Eles têm suas vidas públicas e privadas investigadas, e escândalos e realizações chegam ao conhecimento do eleitor médio durante esse processo — explicou Roberto Georg Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM. — Por outro lado, limitam o número de candidatos que entram de fato na disputa presidencial, bem como a escolha final dos eleitores. Dentro do sistema político americano, isso favorece a manutenção do bipartidarismo.

Embora sejam conhecidas ao redor do mundo, as “primárias americanas” não estão previstas na Constituição. Na verdade, até a década de 1960, poucos eram os Estados que tinham algum processo de participação popular para a escolha dos candidatos. A decisão do nomeado ficava nas mãos de dirigentes partidários, que debatiam, reservadamente, estratégias e preferências durante as Convenções Nacionais (que ainda existem), ao fim das quais apresentavam um nome final.

Manifestantes e policiais de Chicago se enfrentam no Grant Park, em Chicago — Foto: Arquivios Nacionais dos EUA
Manifestantes e policiais de Chicago se enfrentam no Grant Park, em Chicago — Foto: Arquivios Nacionais dos EUA

O processo começou a mudar em 1968, quando eleitores democratas nos Estados que já realizavam prévias se organizaram para apoiar massivamente pré-candidatos contrários à Guerra do Vietnã, que caminhava para o seu 10º ano. Apesar da movimentação representativa, a Convenção Nacional Democrata daquele ano, realizada em Chicago, decidiu indicar Hubert Humphrey, então vice-presidente, que sequer tinha colocado o nome para consulta em algumas das primárias então realizadas. Manifestantes reunidos nos arredores do Hotel Conrad Hilton, local da convenção, protestaram e foram duramente reprimidos pela polícia de Chicago, em um evento que teve ampla cobertura midiática.

Eles não conseguiram mudar a decisão da cúpula do partido — naquele ano, Humphrey seria derrotado nas eleições gerais pelo republicano Richard Nixon, que ficaria para a História pelo escândalo de Watergate —, mas o efeito simbólico da manifestação teve um impacto real. Já na década de 1970, tanto democratas quanto republicanos criaram processos amplos para que os eleitores participassem da seleção de seus candidatos. O modelo virou quase regra, alcançando atualmente os 55 Estados americanos e outros territórios fora do país. Entenda como funcionam as prévias eleitorais americanas.

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DEFININDO QUEM CONCORRE

O caminho para as prévias presidenciais começa meses antes de qualquer voto ser depositado em uma urna, no ano anterior à eleição, com a apresentação das pré-candidaturas. Republicanos e democratas precisam entregar a documentação exigida pela Comissão Federal Eleitoral (comprovações de gastos, definição dos responsáveis pelo comitê de campanha e outras exigências burocráticas) e demonstrar que cumpre os requisitos legais para ser candidato (para presidente, basta ser cidadão americano nascido nos EUA, ter 35 anos ou mais e residir no país há 14 anos, no mínimo).

Cada candidatura obedece a uma lógica e a um cálculo político próprio. Contudo, neste momento, a vontade do candidato tem mais peso que a vontade do partido, que não tem meios para forçar ou impedir um filiado em situação regular de se apresentar como opção. No começo do processo, 14 republicanos e quatro democratas apresentaram pré-candidaturas.

No entanto, os partidos podem estabelecer critérios mínimos, que na prática podem inviabilizar a competitividade de um candidato. Exemplo foi a determinação do Partido Republicano, no ano passado, de que apenas os pré-candidatos que conseguissem atrair 40 mil doadores únicos para suas campanhas — exigindo um mínimo de 200 doadores em pelo menos 20 Estados — teriam direito de participar do primeiro debate das primárias republicanas, um espaço vital para ganhar visibilidade nacional e ser considerado um candidato sério. Às vésperas da primeira prévia, em Iowa, apenas seis dos 14 pré-candidatos republicanos continuavam na disputa.

 — Foto: Arte O GLOBO
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ENTRE PRIMÁRIAS E CAUCUS

Com as candidaturas definidas e validadas pelas autoridades federais, estaduais e pelos partidos, os pré-candidatos estão autorizados a “colocar o bloco na rua” e fazer campanha como em uma eleição geral. O calendário eleitoral é definido pelos Estados, com participação dos partidos, e divulgado aos eleitores. Os requisitos para a votação e as fórmulas de disputa e apuração, contudo, variam de Estado para Estado.

Em certos Estados, eleitores registrados podem escolher em qual prévia votar espontaneamente enquanto, em outros, devem declarar antecipadamente vínculo com algum dos partidos. A principal diferença, porém, está no formato, que pode ser de primária ou caucus.

As primárias são as que mais se assemelham a uma eleição normal. Elas são organizadas e realizadas pelos governos estaduais. Os eleitores se dirigem a locais de votação no dia indicado e depositam seu voto na urna de forma anônima. Ao fim, os votos são apurados e os vencedores apresentados ao público.

Os caucus são um formato que remontam uma tradição que se arrastou do período colonial à democracia dos EUA. Nele, o eleitor precisa demonstrar publicamente seu apoio a um candidato, comparecendo presencialmente a um ato político organizado pelo partido em seu distrito e expressar seu voto diante dos demais presentes. Ou seja, no dia marcado, o eleitor de determinado candidato precisa ir até um local definido previamente, como um ginásio ou um templo religioso, e expressar seu apoio no momento da contagem.

Cada Estado tem uma regra específica, mas em alguns caucus são realizadas votações sequenciais, permitindo que apoiadores de determinado candidato tentem atrair novos eleitores ou mudem de opinião entre uma contagem e outra, até que um candidato conquiste a maioria necessária para vencer o pleito.

 — Foto: Arte O GLOBO
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APURAÇÃO E DELEGADOS

Os formatos de votação diferentes no fim levam a um mesmo caminho: a contagem dos votos. Os caucus costumam ser mais rápidos em apontar um vencedor pelo fato de as contagens serem realizadas em tempo real, enquanto as primárias exigem a abertura de urnas e uma apuração cédula por cédula. Por outro lado, outra especificidade das eleições americanas complica mais um pouco o processo: a presença dos delegados.

Uma diferença marcante das eleições americanas para outras democracias é que, nos EUA, nem sempre o número absoluto de votos define o vencedor. Ao contrário do Brasil, onde o voto de um eleitor em Fortaleza tem o mesmo peso que o voto de um eleitor de São Paulo para o resultado da eleição, o sistema americano privilegia a opinião dos Estados com maior população, e isso se manifesta — nas prévias e nas eleições gerais — na distribuição dos delegados.

Funciona assim: Antes da eleição, são definidos os distritos eleitorais, que costumam ser traçados considerando limites de cidades e condados, levando em conta suas populações. Para cada distrito, é atribuído um número de delegados. Quem vence no distrito, conquista os seus delegados. No caso das prévias, esses delegados do partido representarão o pré-candidato mais votado na Convenção Nacional de sua sigla, da qual sairá a nomeação do candidato presidencial.

O Partido Democrata estabeleceu 3.923 delegados em disputa para seus pré-candidatos. O Partido Republicano, 2.429. O pré-candidato de cada sigla que obtiver mais da metade dos delegados estabelecidos pelo partido será indicados para a disputa geral, em que os candidatos dos dois partidos disputam o mesmo número de delegados (538).

Foi isso que aconteceu com os ex-candidatos democratas à Presidência Al Gore e Hillary Clinton, em 2000 e 2016, durante as eleições gerais. Mesmo com a maioria dos votos diretos dos eleitores, eles perderam na soma de delegados para George W. Bush e Donald Trump, respectivamente, sendo derrotados no Colégio Eleitoral.

No caso das prévias, os partidos criaram mecanismos para tentar fazer a opinião dos eleitores ter mais peso na decisão dos candidatos. Em vez de um sistema em que “o vencedor leva tudo”, alguns Estados estabeleceram um sistema proporcional, em que os delegados do Estado são repartidos de acordo com o percentual de votos por candidato. Outros Estados mantém a regra da eleição geral para as prévias: o vencedor conquista todos os delegados enviados à Convenção Nacional.

 — Foto: Arte O GLOBO
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CONVENÇÃO NACIONAL E INDICAÇÃO DO CANDIDATO

O resultado final das prévias é apresentado de forma oficial pela Convenção Nacional de cada partido, marcada sempre para meados da metade do ano — neste ano, o Partido Republicano realizará a sua entre 15 e 18 de julho, em Milwaukee, e o Partido Democrata entre 19 e 22 de agosto, em Chicago. Porém, não é incomum que os candidatos presidenciais de cada partido sejam conhecidos bem antes de serem nomeados.

Todo o processo de prévias funciona como um funil, em que os pré-candidatos vão abandonando suas campanhas à medida que as votações por Estado vão sendo realizadas e suas chances de vitória diminuem. Essa tradição política faz com que, a cada rodada, os eleitores tenham menos opções em que votar, evitando a pulverização dos votos.

Com a concentração dos votos apenas nas candidaturas mais viáveis, é corriqueiro que um dos pré-candidatos alcance mais de 50% dos delegados nas prévias antes da data da Convenção Nacional, o que torna o momento, antes o ponto alto de expressão de poder dos dirigentes políticos, apenas em um ato festivo e de lançamento do candidato apontado pelo eleitorado do partido

Uebel alerta, porém para uma hipótese improvável: caso os pré-candidatos não se retirem da corrida pré-eleitoral e os votos se pulverizem, chegando-se ao caso extremo de um candidato chegar à Convenção Nacional sem maioria, os delegados designados pelos Estados precisariam abandonar a posição que foram eleitos e, como detentores do direito a voto, teriam de costurar um acordo para lançar uma candidatura.

APURAÇÃO E TEXTOS: Renato Vasconcelos | DESENVOLVIMENTO: Mario Monteiro Martinho | COORDENAÇÃO: Vinicius Machado | EDIÇÃO: Leda Balbino

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