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EUA devem antecipar saída do Afeganistão, e Talibã se prepara para retomar o poder

Analistas veem como inevitável a intensificação do conflito no país, e milícia dá sinais de que prepara ofensiva para derrotar forças do governo; instabilidade poderá afetar nações vizinhas, incluindo Irã e China
Integrantes do Talibã participam de uma cerimônia de entrega de armas às autoridades afegãs na província de Herat, no dia 24 de junho Foto: STRINGER / REUTERS
Integrantes do Talibã participam de uma cerimônia de entrega de armas às autoridades afegãs na província de Herat, no dia 24 de junho Foto: STRINGER / REUTERS

A menos de três meses do prazo anunciado para a retirada dos militares estrangeiros do Afeganistão, países como a Itália e a Alemanha anteciparam seus cronogramas e já não têm mais soldados nas bases locais — segundo afirmaram nesta semana à Reuters fontes do governo americano, os EUA podem seguir o mesmo caminho, e pôr fim a duas décadas de presença em solo afegão daqui a alguns dias. Apesar das promessas de apoio internacional, seja ele político ou militar, os afegãos se veem diante da ameaça do retorno do Talibã ao poder, o mesmo cenário do início da intervenção da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em outubro de 2001.

A decisão de retirar as tropas internacionais do Afeganistão foi tomada ainda no governo de Donald Trump, após um acordo com o Talibã em fevereiro de 2020 , cujos detalhes até hoje são pouco claros e apontados como extremamente favoráveis à milícia extremista.

Pelo texto, os militares partiriam caso o Talibã evitasse que ataques contra os EUA e a Otan fossem organizados a partir do território afegão — o que o grupo de certa forma fez ao combater células locais do Estado Islâmico. Os talibãs deveriam também se engajar em negociações de paz com as autoridades de Cabul. Este processo começou em setembro do ano passado e hoje está estagnado, com questões como a troca de prisioneiros e o sistema político a ser adotado no futuro em aberto.

— Foi uma boa escolha fechar esse acordo, mas foi uma decisão terrível cumprir apenas nossa parte enquanto o outro lado não seguiu suas obrigações — disse ao GLOBO Annie Pforzheimer, ex-vice-secretária assistente para o Afeganistão no Departamento de Estado.

A data prevista por Trump para a retirada dos cerca de 3.500 soldados americanos restantes no país, 1º de maio deste ano, acabou adiada por Joe Biden até o dia 11 de setembro, quando os EUA marcam os 20 anos dos atentados da al-Qaeda contra Nova York, Washington e um avião na Pensilvânia, que deixaram quase 3 mil mortos e motivaram o início da mais longa guerra com participação americana da História. O Pentágono não divulga quantos militares estão no país da Ásia Central no momento, e diz que 650 deles permanecerão depois da retirada oficial para a proteção de diplomatas.

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Ao mesmo tempo em que Biden declarava concluído o objetivo de evitar novos ataques em solo americano, o Talibã dava início a uma de suas maiores ofensivas militares . Em questão de semanas, a milícia tomou o controle de boa parte do território afegão, e a cada dia amplia sua área de influência. Em março, relatório do centro de estudos Conselho de Relações Internacionais apontava que, em termos militares, o grupo está mais forte do que em outubro de 2001, quando ainda governava o Afeganistão.

— Eu vejo isso como um mau sinal para o futuro próximo. E seus ataques são constantes e amplos, de forma que pressionam as forças do governo — pontuou Annie Pforzheimer. — Acho que é previsível que, ao longo do verão no Hemisfério Norte e diante da retirada americana, eles tentem uma vitória militar. Se conseguirem, isso será um golpe contra o processo de paz e podemos dizer que não haverá mais negociações.

Mesmo com o apoio internacional aos esforços de paz, a recente mudança de foco da política externa do governo americano trouxe um elemento a mais de indefinição: em abril, ao anunciar a retirada, Biden sinalizou que os EUA “deveriam lutar as batalhas dos próximos 20 anos, não dos últimos 20 anos” .

— O governo afegão e o Talibã continuarão a se enfrentar da mesma maneira de sempre, não importando a transição dos EUA para outras prioridades de política externa. O que precisamos ver é como o governo afegão vai se adaptar e o quão resiliente será sem o fator psicológico da presença americana e do apoio no país — disse Andrew Watkins, analista sênior do centro de estudos International Crisis Group, ao GLOBO.

Impactos da retirada

Annie Pforzheimer, que hoje é ligada ao Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, baseado em Washington, aponta que a declaração de Biden desconsidera a importância do Afeganistão para tópicos “prioritários” da agenda do Departamento de Estado, como a segurança regional da Ásia, novo eixo estratégico para Washington.

— Eu vi essa posição como um cálculo infeliz. Não existe isso de decidir qual guerra você vai lutar — declarou.

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No Paquistão, vizinho à Índia, aliada de primeira hora da Casa Branca, a intensificação da violência em solo afegão pode fortalecer grupos radicais em áreas de fronteira, levando a instabilidade para o lado de Islamabad. Há o risco, em caso de ampliação da guerra civil, de um grande fluxo de refugiados — hoje, há 1,7 milhão de pessoas nesta situação vivendo em território paquistanês, de acordo com números do Alto Comissariado da ONU para Refugiados. As turbulências locais poderiam impactar também nações como o Irã e a China, que têm fronteiras com o Afeganistão e aparecem entre as prioridades dos EUA.

Há ainda um fator que remete à própria ideia que norteou a intervenção, o combate ao terrorismo global. Hoje, há células ativas do grupo Estado Islâmico dentro do Afeganistão, e embora não controlem mais territórios, foram responsáveis por massacres recentes: no dia 8 de maio, um ataque do grupo contra uma escola de meninas em Cabul deixou 85 mortos, em sua maioria jovens entre 11 e 15 anos.

— Eles não funcionam mais como uma força paramilitar, mas passaram a atuar como células secretas e com ataques assimétricos. Elementos afiliados agora operam nas províncias de Cabul, Parwan e Baghlan, e talvez ao redor do país — aponta Watkins. — O grupo agora se beneficia com a decisão do Talibã de não mais assumir a autoria de atos de violência contra civis. O Estado Islâmico também começou a não reivindicar alguns dos atos, confundindo ainda mais a situação de segurança.

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Apesar de verem como possível um acordo entre o governo afegão e o Talibã em médio prazo, incluindo em ações contra o Estado Islâmico, analistas ouvidos pelo GLOBO apontam que a intensificação da atual guerra civil é certa no curto prazo — e desse conflito poderá sair a ideia de como será o país depois da retirada das forças internacionais.

— Acredito que os dois lados no conflito têm pontos em comum. E se o Talibã, que quer obter uma vitória militar depois da saída americana, perceber que o governo e o povo do Afeganistão podem lutar contra eles, penso que eles podem optar por atingir alguns de seus objetivos através de negociações — pontuou Pforzheimer.