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Além dos vídeos, Zelensky usa lei marcial para consolidar apoio e conter dissidências internas

Presidente viu popularidade chegar a 90% depois do início da invasão russa e é visto como 'herói' no Ocidente, mas analistas apontam que algumas de ações, como a suspensão de siglas de oposição, podem ter impactos após o fim do conflito
Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, entrega alimentos a moradores da cidade de Bucha, nos arredores de Kiev, no dia 4 de abril Foto: STR / AFP
Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, entrega alimentos a moradores da cidade de Bucha, nos arredores de Kiev, no dia 4 de abril Foto: STR / AFP

Em 31 de março, pouco depois de a Rússia anunciar uma mudança de estratégia na invasão da Ucrânia, com a redução “drástica” de seus ataques à região de Kiev, o presidente Volodymyr Zelensky revelou dois raros sinais de dissidências internas. Primeiro, anunciou a demissão de dois integrantes do Serviço de Segurança da Ucrânia, dois agora ex-generais apontados como “traidores” e “anti-heróis”. Depois, ordenou o retorno de seus embaixadores na Geórgia e no Marrocos, afirmando que eles não cumpriram suas funções de defender o país.

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Desde o início do conflito, Zelensky ostenta uma imagem de líder forte, contrariando uma postura vista como instável e questionada por adversários até semanas antes da invasão — em entrevista à Time, em março, amigos revelaram proibi-lo de olhar o Facebook, uma vez que comentários negativos o deixavam triste.

Isso até as primeiras bombas russas começarem a cair, quando Zelensky passou a criticar as forças de Moscou e a pedir aos ucranianos que resistissem a todo custo, incluindo com coquetéis-molotovs . Ao exterior, intensificou os apelos por ajuda militar e sanções contra os invasores, tornando-se uma espécie de “herói” no Ocidente. Até no Grammy, a maior premiação da música nos EUA, ele discursou.

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Hoje, sua popularidade, que era de 30% a 35% em meados de dezembro, está perto dos 90%, resultado da nova postura e da coesão entre seus assessores mais diretos, alguns deles conhecidos dos tempos de ator e comediante. A imagem de um governo unido é reforçada nas falas do presidente .

— Estamos todos aqui. Nossos militares estão aqui. Cidadãos da sociedade estão aqui. Estamos todos aqui defendendo nossa independência, nosso país, e isso vai continuar da mesma forma — disse Zelensky em vídeo de 25 de fevereiro, horas depois do início da invasão, do lado de fora do palácio presidencial em Kiev.

Lei marcial e imprensa

Mas nem só de vídeos de incentivo, apoio de adversários políticos e imagens da resistência contra os russos é feita a base do poder de Zelensky em tempos de guerra. Um de seus pilares de ação é a lei marcial, adotada nas primeiras horas de 24 de fevereiro , que, além de impedir a saída de homens aptos ao serviço militar da Ucrânia, restringe os direitos civis, incluindo de expressão.

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Dois dias depois da adoção da medida, as principais empresas de mídia da Ucrânia anunciaram uma plataforma conjunta de informação, com viés pró-Kiev, que seria transmitida 24 horas por dia. A iniciativa foi transformada em decreto presidencial no dia 18 de março. “Nós entendemos o quão poderosa a máquina de propaganda russa é, e quais os tipos de esforços que o agressor faz para propagar notícias falsas e cinicamente enganar as pessoas. Nós absolutamente nos opomos a isso”, diz o manifesto das empresas, publicado em 26 de fevereiro. A essa altura, canais de TV russos já eram proibidos no país.

Declarações e ações vistas como “antipatrióticas” também passaram a ser punidas. Até o início de março, segundo a agência Interfax Ucrânia, 38 pessoas estavam sendo investigadas por “assistência ao agressor”, e poderiam ser enquadradas no artigo 111 do Código Penal do país, relacionado ao crime de alta traição.

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Entre os suspeitos estavam autoridades de cidades ocupadas e representantes de governos locais — um morador de Kramatorsk, na região de Donetsk, foi o primeiro indiciado em um caso de traição, acusado de publicar vídeos no TikTok “negando a agressão armada da Rússia” e de ter feito convocações para atos de apoio a Moscou. Caso condenado, pode receber uma pena de até 12 anos de prisão.

Também foram identificados “anti-heróis” dentro do Serviço de Segurança da Ucrânia. Em 31 de março, os generais Andriy Naumov Olehovych, chefe do principal departamento de segurança interna do órgão, e Serhiy Kryvoruchko Oleksandrovych, chefe na região de Kherson, foram chamados de “traidores” pelo próprio Zelensky. Os dois ainda perderam a patente de general. Os motivos da punição não foram divulgados.

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No mesmo dia, os embaixadores ucranianos no Marrocos e na Geórgia receberam a ordem de retornar a Kiev. Aparentemente, Zelensky não gostou de ver os países onde estavam baseados se recusarem a adotar sanções contra Moscou ou enviarem armas.

— Existem aqueles que trabalham para que a Ucrânia possa se defender e lutar por seu futuro, e há aqueles que gastam seu tempo se agarrando a seus postos — disse.

Partidos suspensos

Uma das decisões tomadas por Zelensky, embora justificável em tempos de guerra, pode assombrá-lo no futuro, depois que as armas silenciarem e quando o país precisará discutir um acordo de paz com os russos e a sua própria reconstrução como um Estado. Também em 30 de março, o presidente anunciou a suspensão temporária de 11 partidos de oposição , acusados de serem “pró-Rússia”: entre eles, a principal sigla contrária ao governo na Rada, o Parlamento local, a Plataforma de Oposição - Pela Vida, que tem 34 cadeiras.

A sigla era liderada, até há pouco tempo, pelo oligarca Viktor Medvedchuk, apontado como aliado de Vladimir Putin, que é supostamente padrinho de uma de suas filhas — ele chegou a sofrer sanções por seu suposto papel na anexação da Crimeia pela Rússia em meio à chamada Euromaidan, a onda de protestos que derrubou o governo pró-Moscou, em 2014, e que está na raiz do atual conflito. Medvedchuk foi posto em prisão domiciliar no ano passado, mas escapou em fevereiro, e seu paradeiro é desconhecido.

— As atividades desses políticos voltadas à divisão ou à colusão [com Moscou] não vão ter sucesso, e sim receberão uma resposta dura — disse Zelensky em vídeo.

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Analistas apontam que todos os partidos suspensos expressaram apoio ao governo ucraniano e são contra a guerra, sugerindo que a finalidade de Zelensky seria outra.“Tudo indica que a decisão de suspender siglas de esquerda e de oposição tenha pouco a ver com as necessidades de segurança da Ucrânia em tempos de guerra, e muito a ver com a polarização da política após a Euromaidan, além da redefinição da identidade ucraniana que empurrou posições dissonantes para fora dos limites tolerados”, escreveu, em artigo na Al Jazeera, Volodymyr Ishchenko, pesquisador associado do Instituto de Estudos do Leste Europeu, na Universidade Livre de Berlim. “Também tem a ver com as tentativas de Zelensky para consolidar o poder político iniciadas bem antes da invasão russa.”

Apesar de ter sido eleito com uma grande margem no segundo turno contra o ex-presidente Petro Poroshenko e de ter maioria na Rada, Zelensky não vivia um mandato tranquilo, e enfrentava divisões em sua ampla e diversa base, além da pressão pelas promessas não cumpridas. O combate à corrupção, por exemplo, foi deixado em segundo plano, e os oligarcas, rechaçados em sua campanha, mantinham lugares cativos na elite.

Neste cenário, Ishchenko vê o risco de parte considerável do eleitorado se ver excluído do debate e, em um cenário extremo, apoiar algumas visões de Moscou. Além disso, do outro lado do espectro político estão forças avessas a qualquer tipo de contato com o Kremlin, incluindo em um eventual acordo de paz, que precisará ser referendado pela maioria dos ucranianos antes de entrar em vigor.