Crítica
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Por Patricia Kogut

(Para seguir no Instagram é @colunapatriciakogut)

Maestro reputado, Rafael Müller (Antonio Resisnes) sobe ao palco para receber um dos mais importantes prêmios da música europeia. No discurso, cita os colegas de orquestra e agradece à “sua maior parceira de vida”. E explica quem ela é: “a música”. Na plateia, Gloria (Fiorella Faltoyano), sua mulher há 40 anos, ignorada na fala do marido, assiste a tudo decepcionada. No dia seguinte de manhã, pede o divórcio. Ele reage surpreso e argumenta, enquanto ela retira objetos de casa: “Mas nós estamos com 70 anos!” E ela vai assim mesmo. É este fato que faz disparar “Desculpas pelo incômodo”, série espanhola que recomendo com entusiasmo. Há duas temporadas disponíveis na HBO Max. Cada uma tem seis episódios de menos de meia hora.

Um amigo da vida inteira, Rafael Jimenez (Miguel Rellán), se muda para a casa de Müller. Vai fazer companhia e apoiá-lo nos primeiros momentos. Assim, acompanhamos o desenrolar da rotina desses dois setentões.

Os amigos competem. Müller chega a levar uma trena ao restaurante para medir os bifes à milanesa servidos para ambos. Com sua formação clássica, ele debocha de Jimenez, ex-astro do rock que tem entre seus maiores sucessos uma canção cheia de estrofes de protesto. Quando se trata de ritmo e melodias, ambos se comportam como se trabalhassem com escalas musicais diferentes — ou mais do que isso, oponentes e hierarquicamente diversas. Um usa terno e mantém uma pose elegante. O outro cultiva com muita dedicação um rabo de cavalo comprido apesar da calvície pronunciada. Prefere as jaquetas de couro e as camisetas com estampas alusivas a bandas famosas. Mesmo que neguem, têm uma proximidade inexorável: os dois,cada um à sua moda, enfrentam as vicissitudes da idade. Elas vão de problemas de saúde ao desconforto de ser chamado de “senhor” pelos mais jovens. 

O leitor pode até lembrar vagamente de “O método Kominsky”, adorável série da Netflix estrelada por Michael Douglas e Alan Arkin no papel de dois velhos amigos. Mas, diferentemente das produções americanas, sempre puxadas pela ação, “Desculpas pelo incômodo” é levada sobretudo pela minuciosa construção dos personagens. Quanto mais os conhecemos, maior vai ficando a musculatura da dramaturgia. São as diferenças — e o afeto nunca declarado — entre os dois que vão dando dimensão a essa trama simples, sem grandes viradas. O enredo segue num ritmo suave, o de um cotidiano normal.

Müller e Jimenez enfrentam juntos o descarte no meio profissional, já que novos talentos vão ocupando seus lugares, as relações familiares mais ou menos complicadas, os achaques de saúde, os flertes, as tristezas e as alegrias. São o par central dessa historinha doce, cheia de modulações emotivas e que nunca cai na vulgaridade. A dimensão humana dos protagonistas é a grande riqueza do roteiro.

Em espanhol, o título traz um trocadilho que se perdeu na tradução e resume tudo: “Sentimos las moléstias”. Não perca.

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