Crítica
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Por Patricia Kogut

Navegando pela Netflix eu vinha me deparando com a série “Trabalho”. Durante semanas desviei, pensando: foram tantos os documentários e especiais envolvendo Barack Obama recentemente. Para que mais um? Além disso, o título não parecia lá um convite. Preguiça. No entanto, diante da escassez de oferta no streaming nesses dias, resolvi enfrentar. Nos três primeiros minutos, já vi o quanto estava errada.

A produção documental de quatro episódios é um programão. Ela reafirma a ideia de que o ex-presidente americano não sai carimbando seu nome naquilo em que não acredita ou no que empenha pouca energia. A atração resulta de pequisa alentada e de suor da testa dele, que, além de narrar, entrevista e expõe a sua experiência pessoal. Há material histórico e excelentes personagens. Obama dirige ao tema um olhar multidimensional, ao mesmo tempo prático e humanista. É a visão de um acadêmico que conhece os teóricos; e também a de um cidadão que veio de uma família de classe média que se esforçou para criar filhos com segurança econômica. O documentário espelha essa complexidade: ele comove e informa.

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De cara, conhecemos uma auxiliar de saúde que consegue um emprego no At Home Care Mississippi, uma camareira que nasceu no México e está empregada há anos no tradicional hotel The Pierre, em Nova York, uma motorista do Uber Eats que faz bicos de maquiadora. Todas são mães ou avós, algumas delas solteiras, e lutam para ganhar a vida.

Nos primeiros minutos, o ex-presidente relembra um best-seller lido na época de faculdade, publicado em 1974 por Studs Terkel, “Working: people talk about what they do all day and how they feel about what they do”. O livro com depoimentos de mais de cem trabalhadores das mais variadas áreas pautou outros estudos que vieram depois. Obama explica que desejava atualizar esse mapa do trabalho. E começa abrir o seu painel.

O segundo episódio se chama “Middle” e mira na classe média. Ele abre com cenas de sitcoms populares nos EUA nos anos 1970 — alguns deles, como “Mary Tyler Moore”, conhecidos por aqui. E mostra como na década seguinte, a classe média sumiu da teledramaturgia para dar lugar a um encantamento com os muito ricos. O exemplo mais destacado é “Dallas”.

Obama diz que o país foi fundado com base numa diferença estrutural com o colonizador inglês, aristocrata. Os EUA, na sua origem, não deveria ter nem muito ricos nem muito pobres. O sonho americano, nas palavras de Obama, seria fruto dessa “anomalia histórica”.

Os bons personagens se sucedem. Obama visita um músico de Pittsburgh, que se emprega em atividades alheias ao que gosta de fazer, para sobreviver e continuar tocando. Por aí vai. Há muita preocupação sobre a dignidade dos trabalhadores. Em algum momento, ele evoca o New Deal, e a regulamentação das profissões sob a gestão de Franklin Roosevelt, nos anos 1930. O processo de banimento dos negros e dos mais pobres desse pacto também é assunto da série, assim como a proteção oferecida pelos sindicatos.

“Trabalho” diz muito dos EUA, onde a atividade profissional “é” o lugar social das pessoas — e se mistura à própria identidade delas com uma força única. Mas merece toda a atenção do espectador daqui. Não se assuste: não é um tratado sociológico, mas uma atraente visão desse mundo em que todos vivemos: o trabalho.

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