Elizabeth II: cidadãos de ex-colônias relembram atrocidades do Império Britânico

Morte da rainha fez relembrar o legado de violência nos países africanos

Por Ana Flávia Pilar


Rainha Elizabeth II durante visita oficial a Abuja, Nigéria Pius Utomi Ekpei/AFP

A morte da rainha Elizabeth II despertou manifestações de afeto de milhões de pessoas ao redor do mundo, que relembraram a autoridade e a perseverança da monarca, mas também reacendeu críticas ao legado de brutalidade deixado pelo Império Britânico nos países colonizados.

Em jornais e na internet, pessoas negras — nascidas em territórios que foram palco de massacres e privações econômicas durante o colonialismo — reivindicaram a legitimidade de ter seus próprios sentimentos sobre a rainha Elizabeth, que os faz relembrar a opressão sofrida por seus ancestrais.

De acordo com Felipe Paiva, professor de História da África da Universidade Federal Fluminense (UFF), o silenciamento sobre as atrocidades cometidas pelos britânicos foi calculado pelo próprio império:

— A grande maioria da documentação sobre os genocídios cometidos foi escondida. Os arquivos foram queimados, e muitos deles foram jogados ao mar. No Quênia, há campos de concentração com trabalho forçado, onde surgem testemunhos que alegam castração, mutilação e até canibalismo forçado. Tudo isso após Auschwitz, depois que a família real enfrentou o nazismo — disse o pesquisador.

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As colônias britânicas começaram a se tornar independentes em 1957, mas o regime de trabalho forçado foi mantido em muitos desses países, lembrou Paiva. Não se tratava de escravidão, porque havia um salário, mas o trabalhador estava sujeito a violências físicas análogas às do escravismo, e os ganhos a só eram suficientes para a subsistência.

— Esse regime de trabalho, estabelecido no colonialismo, foi mantido nos anos 1970 e 1980. Ele foi usado por jovens Estados africanos já independentes, porque a Inglaterra apoiava governos fantoches, que levavam a cabo um regime de trabalho muito parecido. O Quênia se tornou independente em 1963, mas o trabalho forçado permaneceu nos anos seguintes — explicou.

Nesta quinta, o Twitter apagou uma publicação da professora nigeriana Uju Anya, da Carnegie Mellon University (EUA). Compartilhada mais de 10 mil vezes, a mensagem desejava que a rainha sofresse “dor excruciante”.

“Se alguém espera que eu expresse algo além de desdém pela monarca que patrocinou o genocídio, que massacrou e deslocou metade da minha família, e cujas consequências os que vivem ainda tentam superar, pode continuar desejando”, escreveu a professora.

Já o Economic Freedom Fighters, partido de esquerda da África do Sul que surgiu como uma cisão do Congresso Nacional Africano (CNA), de Nelson Mandela, disse em um comunicado que não lamentaria a morte de Elizabeth, “porque é o lembrete de um período muito trágico no país e na história da África”. Segundo o texto, ela era chefe de uma instituição "construída e sustentada por um legado brutal de desumanização de milhões de pessoas".

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Ao The New York Times, a advogada Alice Mugo, do Quênia, disse que é possível olhar para a monarquia do ponto de vista do “chá da tarde, roupas bonitas e caridade, mas também há o lado feio, e ignorar o lado feio é desonesto”.

Recentemente, ela encontrou o “passe de movimento” da avó, emitido quando o governo colonial britânico declarou estado de emergência no país para reprimir o movimento anticolonial conhecido como Revolta dos Mau-Mau. O documento servia para restringir a circulação da população nativa.

A repressão aos quenianos, iniciada poucos meses depois de a rainha chegar ao trono, foi marcada por campos de detenção, tortura, estupro e pela morte de dezenas de milhares de pessoas. Segundo a advogada, "quem lamenta a morte da rainha desconhece que o seu governo tirou liberdades básicas de milhões de pobres e negros".

A autora Lovette Jallow, nascida na Gâmbia, relembrou que os negros têm sofrido coletivamente, por séculos, uma dor que não é respeitada. Para ela, esperar a permissão daqueles que mais se beneficiam do colonialismo é “loucura”.

“Quando se trata da dor de certos grupos demográficos, todos devemos nos curvar e chorar. Nunca é o momento certo para falar sobre opressão e colonialismo aos olhos de certas demografias”, afirmou.

Karen Attiyah, mulher nigeriana, escritora e colunista do Washington Post, concorda. No seu perfil do Twitter, ela conta a história da família, afetada diretamente pelo colonialismo britânico, e explica como o racismo institucionalizado impacta o direito à cidadania de pessoas africanas ainda hoje:

“Pessoas negras e pardas, sujeitas a horríveis crueldades e privações econômicas sob o colonialismo britânico, podem ter sentimentos sobre a rainha. Meus tataravós trabalharam na administração colonial, assim como meu avô. Meu pai e minha mãe nasceram em Gana e na Nigéria, no período do domínio britânico. O Reino Unido rejeita pedidos de visto da África duas vezes mais do que de outras partes do mundo, e ainda mantém itens culturais que saqueou de Gana. Mas claro, vamos beijar o anel (o ato de beijar o anel representa respeito a autoridades religiosas)”, disse.

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