Em suas conversas, Élle de Bernardini gosta de reiterar que, desde criança, jamais viu algo de errado em si. “Sempre me amei como eu sou. Eram os outros que apontavam o dedo e diziam que, supostamente, havia algum problema”, diz a artista visual, dias após se mudar para o Rio, onde inaugura uma exposição individual no próximo dia 12, na Portas Vilaseca Galeria, em Botafogo.
Nascida em Itaqui, no Rio Grande do Sul, a jovem, de 31 anos, conta que, ainda pequena, quando ia a uma loja, as vendedoras costumavam tratá-la como menina, e o gênero era, então, corrigido pela mãe. “É meu filho”, ela respondia. Na adolescência, porém, começou a sentir-se como alguém “em trânsito” até compreender-se, finalmente, mulher trans.
Isso aconteceu durante a faculdade de Jornalismo, quando uma professora a confidenciou que mal conseguia chamá-la pelo nome masculino nas aulas. Após a conversa, a aluna decidiu pegar emprestado o pronome feminino francês e adicionou um acento. “Como diz a (atriz) Nany People, eu tenho um negocinho a mais. Nada mais é do que o pênis”, ironiza a artista, cuja única intervenção estética adotada foi um tratamento a laser para remover os pelos da barba. “Por toda a vida, me aceitei muito bem em relação ao meu corpo. A coisa mais libertadora que pode existir para uma pessoa trans é não querer pertencer a uma norma cis.”
A maneira como ela compreende o corpo humano transcende a experiência pessoal e reverbera nas artes visuais, numa trajetória que completa dez anos em 2024. Na mostra carioca, a temática aparece já na entrada, em telas onde figuras inspiradas nas letras X e Y, numa referência aos cromossomos atribuídos pela ciência aos gêneros, são dispostas de maneiras diversas.
Ela se baseia em estudos científicos que indicam que homens e mulheres, se fizerem um mapeamento genético, vão descobrir variações muito além do XY e do XX. Daí o nome da exposição: “Anomalia”. “A regra da natureza, quando é vista com mais cuidado, é a pluralidade, a exceção. Cada indivíduo, cada formação de organismo é diferente e tem a sua complexidade. É anômalo”, afirma.
Esses questionamentos aparecem também em trabalhos como as telas com as “formas contrassexuais” inspiradas nas teorias do filósofo espanhol Paul B. Preciado. São símbolos que remetem a zonas erógenas, como vulva, seios e pênis, combinadas de diferentes maneiras para além da dicotomia normativa de masculino/feminino. Há, ainda, quadros revestidos com pelúcia e silicone industrial dispostos com um rasgo no meio. “Um convite para vermos o além. O que está por trás daquele corpo”, diz.
Élle de Bernardini posa em seu novo ateliê no Rio, em ensaio exclusivo
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Vestido Marina Bitu — Foto: Augusto Rubim
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Balaclava e blusa ÃO — Foto: Augusto Rubim
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Vestido ÃO e sapatos acervo pessoal — Foto: Augusto Rubim
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Vestido Marina Bitu — Foto: Augusto Rubim
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Vestido e luvas Rodrigo Evangelista e sapatos acervo pessoal — Foto: Augusto Rubim
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Vestido Marina Bitu — Foto: Augusto Rubim
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Vestido ÃO e colar acervo pessoal Élle — Foto: Augusto Rubim
Curadora da mostra, Horrana de Kássia Santoz afirma que as obras unem os discursos artístico e pedagógico para promover uma concepção inclusiva e vibrante da natureza humana. “A maneira como Élle investiga temas profundos e a conexão dela com teorias e perspectivas acadêmicas proporcionam uma experiência enriquecedora. Isso alcança tanto familiarizados com a discussão sobre identidades de gênero e sexualidades, quanto quem está sendo introduzido a esses temas”, analisa.
A clareza no discurso tem a ver com a própria variedade de experiências acumuladas por Élle, apesar de ser uma artista jovem. Além do Jornalismo, ela estudou Filosofia e formou-se em balé clássico pela Royal Academy of Dance de Londres. Uma trajetória que a ofereceu bases sólidas para se expressar também por performances instigantes, apresentadas em diferentes museus.
A mais famosa é “Dance with me”, comprada, em 2019, pela Pinacoteca, em São Paulo, num feito inédito para uma artista trans àquela altura. No trabalho, ela cobre o corpo nu com mel e folhas de ouro e convida o público a dançar. Por onde se apresentou, os visitantes sempre fizeram fila para participar. Algo que a curadora-chefe da instituição, Ana Maria Maia, atribui, em parte, à forte simbologia da obra. “Conforme ela se movimenta, as folhas de ouro vão se desfazendo e entram em contato com as roupas dos pares. É como se deixasse as marcas de suas emoções e singularidades sobre o outro”, comenta.
O impacto de produções como essa conferiu a Élle projeção internacional. A maior parte dos compradores de suas obras, afirma a jovem, está na Europa, e ela já tem trabalhos no acervo da Biblioteca Nacional da França. Em breve, também embarca para uma temporada em Paris, onde conclui a segunda parte de uma residência artística na Cité Internationale des Arts, até voltar para o Rio, onde escolheu morar. “Estava em São Paulo, mas era uma vida muito focada no trabalho”, conta. “Agora, as coisas já estão mais encaminhadas. No meu imaginário, o Rio sempre foi o lugar onde sonhei viver.”
Élle está em paz com a própria inquietude.