Bruno Astuto
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Bruno Astuto


Foram 100 anos da morte de Franz Kafka no último dia 3, e fiquei pensando sobre sua grande amizade com o também escritor Max Brod. Kafka morreu precocemente de tuberculose aos 40 anos, e confiou a Brod uma última vontade: que ele queimasse todos os seus escritos que não haviam sido publicados, ou seja, a grande maioria. “Meu querido Max, um último desejo: tudo o que deixo para trás, em forma de diários, manuscritos, cartas como remetente e destinatário, desenhos etc (...) deve ser queimado inteiro e sem ser lido, assim como tudo o que foi escrito ou desenhado e que estaria em sua posse ou na posse de outras pessoas às quais você deve pedir, em meu nome, que façam o mesmo. Qualquer pessoa que se recuse a confiar-lhe as suas cartas deve pelo menos prometer queimá-las. Atenciosamente, Franz Kafka”

Embora nada possa ser mais claro do que esse bilhete escrito dois anos antes da morte do autor e encontrado numa gaveta, Brod, o amigo, julgou que seria uma grande tragédia privar o mundo de Kafka e assim decidiu trair seu desejo, publicando tudo. Mais que isso, tornou-se o curador póstumo de sua obra, o viúvo literário, o herói que promoveu o gênio que nunca fora reconhecido em vida e, para choque de muitos, uma mão que interferiu nos seus escritos inacabados e até na biografia do interessado.

Brod acabou salvando para a Humanidade escritos que jamais chegariam aos seus olhos, como “O processo” (1925), “O castelo” (1926), “América” (1927) ou “Carta ao pai” (1937). Mas ele também se colocou numa encruzilhada moral. O que vale mais? Entregar à sociedade obras-primas que a fariam filosoficamente avançar ou respeitar a última vontade de um amigo?

Formado em Direito, Kafka sabia bem que seu bilhete não era exatamente um testamento, um documento jurídico formal. Sequer o enviou pelo correio. E conhecia a natureza de Brod, o amigo que mais o incentivou a publicar seus escritos, que o apresentou ao seu editor. Ele era a pessoa menos indicada a quem endereçar aquele bilhete, e por isso mesmo Kafka — de forma kafkaniana — talvez o tenha feito. Já que sentia tanta repugnância pela publicação dos textos não publicados em vida, por que não os destruiu com suas próprias mãos, como Gógol fez com as segundas partes de “Almas mortas” ou Bulgákov com seus diários? “Imagino, por exemplo, que estou deitado no chão e que sou dado pedaço por pedaço, lentamente, a um cachorro. Esse tipo de ideia é o alimento diário da minha mente”, escreveu Kafka em abril de 1913. Ser o menu principal do canil não lhe era, portanto, uma ideia de todo ruim, o que nos leva a refletir sobre a pouquíssima hesitação de Brod em desobedecer ao amigo. No fim das contas, um pediu sem nunca ter enviado o pedido, e o outro nunca aceitou, então meio que se sentiu liberado.

Se fosse hoje, o amigo “traíra” não receberia qualquer resistência acerca de sua decisão. Especialmente numa sociedade em que se edita qualquer coisa que o autor não queria nem que fosse dita ou sequer disse; em que absolutamente nada é guardado; em que tudo é para ser publicado e oferecido a interpretações de quem nem mesmo chegou a ler. Uma apologia ao desperdício justificada pela presunção de interesse coletivo, a despeito até do desejo de quem não está aqui para reclamar e cuja memória a tradição costumava mandar honrar.

O mundo do algoritmo é o apogeu das detenções e dos julgamentos arbitrários de “O processo”, e da vigilância burocrática de “A metamorfose”, que transforma humanos em baratas. Sua vontade, quer você esteja ausente quer você esteja presente, será esmagada com uma vassoura. A quem pertence sua vida, suas ideias, seus pensamentos? Kafka não poderia estar mais atual.

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