Bruno Astuto
PUBLICIDADE
Bruno Astuto
Informações da coluna

Bruno Astuto


Em 1944, o diretor norte-americano George Cukor lançou nos cinemas “Gaslight” (no Brasil, “À meia-luz”), um suspense baseado numa peça de 1938 e passado na Inglaterra vitoriana, em que um marido vai baixando gradualmente as luzes a gás da casa (o gaslight do título) para levar a mulher a acreditar que a razão, pouco a pouco, vai diminuindo em sua própria mente. Ele se serve de técnicas sórdidas de manipulação: diz que ela perdeu o broche que ele lhe deu de presente, quando na verdade ele o escondeu; acusa-a de ter roubado seu relógio quando ela decide ir a uma festa organizada por um amigo da família e o prova ao encontrar a peça na sua bolsa, diante de todos; ela ouve ruídos do sótão provocados por ele, que diz que é sua imaginação.

O longa deu o primeiro Oscar à atriz Ingrid Bergman, e também consagrou o termo nos estudos psicológicos: gaslighting significa operar uma perversão da noção de verdade, deturpando seus instrumentos de linguagem e fazendo crer que o indivíduo está enlouquecendo ao defendê-la. É a arma dos manipuladores e dos opressores, não por acaso o filme alcançou tamanho sucesso em plena guerra contra o nazismo.

A filósofa francesa Hélène Frappat acaba de lançar um livro excelente, “Le Gaslighting ou l’art de faire taire les femmes” (“O gastlighting ou a arte de calar as mulheres”, ainda sem tradução em português), em que ela contextualiza o termo para o histórico silenciamento feminino na sociedade. A autora demonstra que o comportamento nasceu bem antes da expressão, citando desde a misoginia de Aristóteles e Plutarco às heroínas trágicas da ficção de ontem, como Helena de Troia, Cassandra e Antígona, e às dos tempos mais recentes, como Alice no País das Maravilhas. Sem contar pessoas reais, como Britney Spears, e sobretudo movimentos políticos, como nas artimanhas do trumpismo, que reacendeu o termo na mídia com as suas fake news e encontrou eco em diversas partes do mundo — até nos tristes trópicos, como se sabe.

O gaslighting se traveste de santidade, fundamentalismo religioso, cuidado e até de humor, mas na verdade é puro sarcasmo e ironia grosseira que visam a desmerecer o oprimido e o ridicularizar perante a sociedade quando ele está clamando pelo óbvio. Ao distrair as massas das questões mais prementes com projetos cruéis e estapafúrdios — como aquele, por exemplo, que tenta punir a vítima grávida de estupro com uma pena maior do que o estuprador caso ela decida abortar —os dirigentes ampliam a escala da violência íntima para o campo político amplo, institucionalizando-a. E transformam o Congresso na mesma casa mal iluminada em que as verdades factuais são negadas e vidas são categorizadas em diferentes hierarquias, como se a da menina que ficou grávida por um estupro fosse menos importante do que a do feto. Mal conseguem disfarçar seus interesses sorrateiros, a exemplo do marido do filme, que, para criar os sons dos passos no sótão que enlouqueciam a esposa, entrava por uma claraboia pela casa vizinha. Que mundo é esse, em que discussões tão complexas são jogadas pela fresta da claraboia?

Diante dos absurdos que vimos nas últimas semanas, é bastante razoável concluir que estão tentando nos enlouquecer. Mas os dias do “você está louca, cale-se” só estarão contados quando a educação trouxer consigo a razão e, por conseguinte, o voto consciente. “A tua lei não é a minha lei. A tua lei não é a lei dos deuses. É apenas o capricho ocasional de um homem”, disse Antígona. Até lá, sigamos atentos para que as luzes não se apaguem de vez.

Mais recente Próxima A última vontade