Agustina Bovi tem dois empregos, mas não pode gastar com esporte e lazer. Samanta Gómez não pode mais pagar por educação e saúde: a classe média, símbolo histórico de uma Argentina igualitária, está afundando com o peso da inflação e da perda de renda.
- PIB: Economia da Argentina tem queda de 1,6% em 2023
- Argentina, Brasil, Espanha e EUA: onde leite, smartphone e Big Mac são mais caros? Veja comparação
- Este é o melhor emprego no pior momento econômico - disse Bovi, uma cozinheira de 30 anos que trabalha em um restaurante vegano com seis mesas em Buenos Aires.
Ela tem outro trabalho noturno e, mesmo assim, seu salário não chega ao fim do mês porque não há clientela. O volume "de gente há três meses era o dobro de agora. E isso é muito. Sentimos em nossos salários". A crise econômica no país, cujo PIB encolheu 1,6% no ano passado, segundo divulgou o órgão nacional de estatísticas do país nesta quarta-feira, está esmagando a classe média.
- Para combater a inflação: argentinos trocam o dólar pelo bitcoin
De dezembro, quando o presidente Javier Milei assumiu, a fevereiro, a inflação acumulada superou 70%. Em 12 meses, ronda 280% após anos de aumentos de preços, o que leva a um contínuo colapso do poder de compra e portanto do consumo. Ontem, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec) divulgou que o PIB do país recuou 1,6% em 2023.
![A chefe de cozinha Agustina Bovi cozinha no pequeno restaurante vegano "Yedra", onde trabalha em Buenos Aires — Foto: JUAN MABROMATA / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/Y6u7iSbocxjg1lei7DDzGSo0xKo=/0x0:1024x682/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/9/a/OouUBhSqaMoEwJ2vOpzw/000-34lg7c4.jpg)
"Nos últimos três meses tive que cancelar academia, saídas, tudo o que é lazer", conta Bovi. "Há muito tempo não compro roupas. Os gastos em casa são básicos. Mudamos marcas de creme dental, de desodorante. Atualmente compramos só o mais barato no mercado e abdicamos de produtos".
Um símbolo nacional naufraga
"Eu me considerava de classe média. Agora sinto que quem era de classe média passou para classe baixa ou pobre", afirma a jovem.
Ezequiel Adamovsky, historiador especializado no tema, explica que a classe média argentina está encolhendo há 50 anos e o país perde a base que antes o tornou próspero.
- 'Céus abertos' vai aumentar voos entre Brasil e Argentina? Não por enquanto
A situação se agravou desde que Milei cortou subsídios ao transporte, combustível e taxas de serviços, eliminou normas que regulamentavam os contratos de locação e os preços do atendimento médico privado. Isto se somou ao golpe inflacionário causado por uma desvalorização de 50% a poucos dias de sua posse.
Crise econômica avassala Argentina; veja imagens
![Um homem compra frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Em meio a crise, o país criou nova cédula de 2000 pesos argentinos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/ft35TVxgUDPgVhsTMCptwEDg6HQ=/0x0:7197x4798/648x248/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/s/t/CFZoovSbWv3G2CmyzGGw/103002429-a-man-buys-fruits-and-vegetables-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-arge.jpg)
![Um homem compra frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Em meio a crise, o país criou nova cédula de 2000 pesos argentinos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/ws_HrXBDs5IACBzzye7bDIzuRns=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/s/t/CFZoovSbWv3G2CmyzGGw/103002429-a-man-buys-fruits-and-vegetables-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-arge.jpg)
Um homem compra frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Em meio a crise, o país criou nova cédula de 2000 pesos argentinos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
![Um homem procura comida dentro de uma lata de lixo onde frutas e vegetais descartados são depositados no Mercado Central de Buenos Aires. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/4dmF7FOAn-uexSzHs59GqiaCoOs=/0x0:7614x5076/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/B/d/Xx2gRiSCifKkqtRY1x5Q/103008262-topshot-a-man-searches-food-inside-a-trash-can-where-discarded-fruits-and-vegetables-are.jpg)
![Um homem procura comida dentro de uma lata de lixo onde frutas e vegetais descartados são depositados no Mercado Central de Buenos Aires. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/onGKfw_Ob6B9Bgcx7Yjp2cEIJXA=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/B/d/Xx2gRiSCifKkqtRY1x5Q/103008262-topshot-a-man-searches-food-inside-a-trash-can-where-discarded-fruits-and-vegetables-are.jpg)
Um homem procura comida dentro de uma lata de lixo onde frutas e vegetais descartados são depositados no Mercado Central de Buenos Aires. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Publicidade
![Mulheres compram queijo em uma banca do Mercado Central de Buenos Aires. Argentina tem uma das maiores taxas de inflação do mundo. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/e7BnCCmK3ABTXp4qsvNopzJwbHY=/0x0:6919x4613/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/E/f/FJ0jnbTNOGfBzaopjvLA/103002437-women-buy-cheese-in-a-stall-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-argentina.jpg)
![Mulheres compram queijo em uma banca do Mercado Central de Buenos Aires. Argentina tem uma das maiores taxas de inflação do mundo. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/fUyHIMPeFona5huR-gBa9FfMcqI=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/E/f/FJ0jnbTNOGfBzaopjvLA/103002437-women-buy-cheese-in-a-stall-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-argentina.jpg)
Mulheres compram queijo em uma banca do Mercado Central de Buenos Aires. Argentina tem uma das maiores taxas de inflação do mundo. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
![Uma mulher vende frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Peso argentino sofre constante desvalorização em relação ao dólar americano. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/6Zr0pfdq9GEPTIu3VUGYXqEmQkA=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/A/q/jKj6apRAC4C7eONEsFHg/103002443-a-woman-sells-vegetables-and-fruits-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-a.jpg)
Uma mulher vende frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Peso argentino sofre constante desvalorização em relação ao dólar americano. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Publicidade
![A típica erva-mate argentina também sofreu com a alta de preços devido a crise econômica. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/xF7lerKQnEY3c0rGs-RCpMQywOY=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/a/Y/I1cvRRRHuiXEOT0rQRVQ/103003146-different-brands-of-yerba-mate-are-seen-with-signs-indicating-their-prices-in-argentine-pe.jpg)
A típica erva-mate argentina também sofreu com a alta de preços devido a crise econômica. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
![Com a crise econômica, um quilo de queijo chega a valer mais de 2000 pesos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/4p3MjTYKDynhm0xX_6lpgrQnN5Q=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/e/C/hpuBs1TdSn1CZV1ECfyw/103003170-different-types-of-cheeses-are-seen-with-a-sign-indicating-their-price-in-argentine-pesos.jpg)
Com a crise econômica, um quilo de queijo chega a valer mais de 2000 pesos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Publicidade
![Vista aérea das avenidas General Paz e Perito Moreno em Buenos Aires, capital da Argentina. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/YYwTqpDYpp7U2t8GbtX6mWCeewY=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/3/A/Tp8FrUR5KCTRsIb2Csdg/103002475-aerial-view-of-the-general-paz-and-perito-moreno-avenues-at-dawn-in-buenos-aires-on-may-12.jpg)
Vista aérea das avenidas General Paz e Perito Moreno em Buenos Aires, capital da Argentina. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Desde então, os salários perderam um quinto de seu poder aquisitivo (18%), em sua pior queda em 21 anos, segundo o índice oficial RIPTE.
A pobreza alcança quase seis a cada 10 argentinos.
"Os salários sofreram um queda inédita", disse Adamovsky. "Não havia uma queda tão rápida dos níveis salariais desde a época dos militares" (1976-1983).
Atualmente, a classe média "não é homogênea" mas um "conjunto de fragmentos, como os destroços de um naufrágio", afirmou.
Um de seus símbolos era Mafalda, a menina dos quadrinhos de igual nome desenhada pelo cartunista Quino (1932-2020).
![Samanta Gomez, que está se recuperando de um derrame, olha para seu cachorro na casa de sua avó, onde mora com seu parceiro e três filhos, na periferia de Buenos Aires — Foto: JUAN MABROMATA / AFP](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/JWl-TV1KoO63GYXsXwiK19mmzFg=/0x0:1024x682/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/m/h/HN73aWTzWg7N8Ru0iOrQ/000-34lg7bl-1-.jpg)
Esta transformação não é apenas quantitativa, mas também ideológica. Atualmente, gastos públicos em saúde e educação, assim como subsídios à cultura e pesquisa, são "atacados e apontados como males do país", segundo Adamovsky.
Samanta Gómez, uma enfermeira de 39 anos, precisou transferir seus filhos de uma escola particular para uma pública devido ao aumento nas mensalidades e também suspendeu atividades recreativas com gastos. "Só vamos à praça", relata.
"Antes vivia de forma mais controlada e de repente um tsunami arrasou as vidas que levávamos até dezembro. Houve uma mudança de 180 graus", diz a mulher, que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em fevereiro.
"Acho que minha cabeça colapsou com a preocupação financeira, a saúde das crianças, o colégio, o cotidiano deles", lamenta.