Teatro
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Por O GLOBO

Os títulos dão a dica: "experiência imperdível", "festa do talento", "momento memorável", "trabalho exemplar". Não foram poucas as vezes em que Barbara Heliodora louvou o trabalho de atores e atrizes. Em algumas, como no espetáculo "In on it", exaltou a combinação de ótimo texto e de atuações impecáveis. Em outras, como em "Um circo de rins e fígado", destacou o brilhante desempenho do ator – no caso, Marco Nanini – como peça-chave na montagem. A crítica ficou conhecida pelas suas avaliações demolidoras, mas são muito numerosos os textos elogiosos. Veja aqui dez críticas em que Barbara Heliodora exultou com a interpretação vista no palco. (Nani Rubin)

  1. Fernanda incorpora clown heroico e devastador. "Dias felizes", com Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Texto de Samuel Beckett, direção de Jacqueline Lawrence
  2. Ator e plateia cúmplices do fenômeno teatral. "Visitando o Sr. Green", com Paulo Autran e Cássio Scapin. Texto de Jeff Baron, direção de Elias Andreato
  3. Uma atuação preciosa. "SoPPa de letras", com Pedro Paulo Rangel. Roteiro de Pedro Paulo Rangel, Antonio de Bonis e Naum Alves de Souza. Direção de Naum Alves de Souza
  4. A festa do talento de Marco Nanini. Triunfo da teatralidade em peça feita de episódios impactantes. "Um circo de rins e fígados", com Marco Nanini. Criação e direção de Gerald Thomas
  5. Um ator em momento memorável. "Eu sou minha própria mulher", com Edwin Luisi. Texto de Doug Wright, direção de Herson Capri
  6. Atuação para se guardar na memória. "A última gravação de Krapp" e "Ato sem palavras 1", com Sérgio Britto. Textos de Samuel Beckett, direção de Isabel Cavalcanti
  7. Debora Duarte brilha ao rimar humor e dor. Adorável desgraçada, com Debora Duarte. Texto de Leilah Assumpção, direção de Otávio Müller
  8. Magistral, absoluta, admirável. O implausível contado com talento. "Gloriosa", com Marilia Pêra. Texto de Peter Quilter, adaptado por Claudio Botelho. Direção de Charles Moëller e Claudio Botelho
  9. Texto + ator: experiência imperdível. "In on it", com Emilio de Mello e Fernando Eiras. Texto de Daniel McIvor, direção Enrique Diaz
  10. Um trabalho exemplar. "Simplesmente eu". Clarice Lispector, com Beth Goulart. Texto de Beth Goulart, direção Beth Goulart com supervisão de Amir Haddad

1. Fernanda incorpora clown heroico e devastador. "Dias felizes", com Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Texto de Samuel Beckett, direção de Jacqueline Lawrence (publicado em 3/7/1995)

O teatro, enquanto forma de arte, tem uma fascinante limitação: ele só pode tratar de comportamentos humanos. Dentro da vasta flexibilidade e abrangência de tais limitações, há lugar para toda a variedade que os últimos 2.500 anos nos deram. Samuel Beckett, com um caminho próprio, acredita que nem só de facilidades vive o homem, e que pode haver grande prazer para o espectador em ter de pensar um pouco, prestar atenção, não receber tudo tão facilitado quanto no teatro infantil. "Dias felizes" ("Happy days"/"Oh! Les beaux jours") investiga a solidão, a finitude, a perseverança e até mesmo a bravura humanas com um texto memorável, no qual as mais rotineiras atividades do dia a dia, vistas com objetividade, humor e crueldade, acabam por tocar profundamente todos aqueles que gostam de ver o teatro cumprir o seu mais alto destino.

Em "Dias felizes", Beckett cria sua metáfora sobre o destino humano e suas limitações com um quadro no qual restrições extremas são impostas igualmente à encenação e a seus intérpretes: no meio do deserto em que é transformada a experiência humana, uma mulher excepcionalmente ativa busca preservar seu implacável otimismo, enterrada primeiro até a cintura e, depois, até o pescoço na aridez a que foi reduzido o mundo em que vive, tendo por única companhia o companheiro (?), marido (?), não aprisionado pela areia, mas cerceado por dificuldades físicas e uma imensa relutância em participar da luta heroica de Winnie, a protagonista. Os sons da vida, o desgaste da vida, é com isso que Beckett constrói o universo cênico de sua metáfora. Na produção em cartaz do Teatro Villa-Lobos, esse universo é lindamente evocado pela cenografia de J.C. Serroni, que, com lona (tratada com tinta e alguma substância fragmentada), cria, tanto pela textura quanto pela variação de cor, do bege ao vermelho, não só o deserto, como também o calor que Beckett ressalta no texto.

A direção de Jacqueline Laurence, com grande intimidade intérprete, parece ter trabalhado mais com os andamentos, as pausas, a busca de intenções contidas no texto, aproveitando o talento à sua disposição sem maiores imposições, em particular no primeiro ato. Já no segundo, a construção da ação tem ainda mais claramente um ritmo físico, em particular no excelente aproveitamento do tratamento do relutante Willie, por intermédio de quem é criada uma incrível tensão na parte final da peça.

No papel do relutante Willie, Fernando Torres volta ao palco, e, como fez Jean-Louis Barrault com Madeleine Renaud, deixa sua marca na medida exata que pede sua função de contraponto. E a Winnie de Fernanda Montenegro é de primeira linha: com um pouco de clown na maquiagem (e muito no olhar), indomável em sua luta, em sua resistência, Fernanda faz Winnie exultar em sua capacidade para fazer o melhor uso possível dos recursos que a vida cada vez lhe limita mais. A voz é o mais possante deles, e há algumas ocasiões no primeiro ato em que fica um pouco excessiva a exploração de seu grande domínio da técnica vocal: em certos momentos, é possível que os tons mais rotineiros da mera dona de casa resultassem mais comunicativos. Mas, no segundo ato, quando tudo senão a voz lhe foi tirado, Fernanda abre mão de toda a artificialidade e penetra com, arrasadora tragicidade no puro simples heroísmo de Winnie diante do despojamento último. E é inclusive nos momentos de implacável separação que mais forte fica a ligação daquele casal de longa caminhada, de experiências e perdas dolorosas.

Nem sempre o teatro é só diversão; há ocasiões em que saímos do teatro mais ricos, mais fortes, mais integrados no complexo processo de ser parte da humanidade. Tudo isso, com o humor que Beckett injeta em sua obra, torna "Dias felizes!" uma ocasião de excepcional qualidade.

2. Ator e plateia cúmplices do fenômeno teatral. "Visitando o Sr. Green", com Paulo Autran e Cássio Scapin. Texto de Jeff Baron, direção de Elias Andreato (publicado em 9/7/2001)

A interpretação de Paulo Autran tem uma espécie de assinatura que se manifesta principalmente em papéis dos quais ele gosta muito: por trás do personagem, e sem interferir com a integridade deste, seus olhos têm um brilho especial, que de algum modo informa a plateia de que ele e ela, naquele momento, são coniventes para a criação do fenômeno teatral. Em "Visitando o Sr. Green", peça em cartaz na Sala Marília Pêra do Teatro Leblon, de autoria do americano Jeff Baron e traduzida com espírito pelo próprio Paulo Autran, fica óbvio que o velho judeu ranheta entrou para a galeria dos que merecem o carinho do ator.

O texto de Baron, judeu como seus dois personagens, e por isso mesmo imune a qualquer acusação de incorreção política, fala com amor e humor de um mundo que ele conhece. Quando o jovem Ross Gardiner é condenado a prestar serviços sociais ao viúvo e solitário Sr. Green, Baron cria um conflito de gerações e visões de vida que coloca o velho que a vida inteira viveu à sombra da imagem das perseguições europeias aos judeus e se abriga na preservação ortodoxa de seus princípios religiosos face a face com seus próprios preconceitos.

Paulo Autran dá tratamento de ourives ao personagem. O cenário de Renato Scripilliti, se nada nova-iorquino, consegue ao menos criar um mundo de solidão e parcimônia, cuja rotina é corretamente iluminada por Domingos Quintiliano. Os figurinos de Elena Toscano sublinham bem o contraste entre os dois mundos dos personagens, e a trilha de Tunica faz ótima contribuição pelo uso da melancólica e linda música judaica.

A direção de Elias Andreato é muito firme, e mesmo depois de dois anos de carreira, segura o espetáculo aquém do caricato, mesmo que o texto explore (com simpatia e delicadeza) as idiossincrasias do Sr. Green e as angústias do jovem Ross.

Em um espetáculo de dois atores, quando não há equilíbrio se perde tudo. Cássio Scapin, no papel do jovem que vem cumprir sua pena com tão má vontade quanto a do cabeçudo velho ranzinza que tem de visitar, interpreta Ross com grande firmeza e sensibilidade e se afirma, com ótima atuação, diante de um Paulo Autran que deu à criação do Sr. Green um tratamento de ourives.

Todo o complexo trabalho de composição física e vocal, no entanto, seria perdido se envolto nele Paulo Autran não entrasse em total sintonia com a personalidade, as manias e as lembranças do velho que ergueu uma muralha defensiva em torno de suas emoções e sofrimento. Um trabalho realmente exemplar, em um texto hábil e simpático.

3. Uma atuação preciosa. "SoPPa de letras", com Pedro Paulo Rangel. Roteiro de Pedro Paulo Rangel, Antonio de Bonis e Naum Alves de Souza. Direção de Naum Alves de Souza (publicado em 10/7/2004)

Está em cartaz, no teatro do Centro Cultural Justiça Federal, "SoPPa de letra", assim mesmo, com dois pês, alusão ao nome de seu único intérprete, Pedro Paulo Rangel, cujo apelido é PP. Estando tão em moda não se montar textos dramáticos, mas adaptações de romances ou contos, o próprio Pedro Paulo reuniu-se com Antônio de Bonis e Naum Alves de Souza para criarem, juntos, um roteiro que busca uma outra fonte não dramática, as letras da MPB. O trio pesquisou, selecionou, organizou até encontrar o material que pudesse concretizar a ideia, que Pedro Paulo já acalentava há muito tempo. O resultado não tem nada de adaptação, não é um recital e nem constrói um enredo. O que se ouve no palco é uma espécie de caixa mágica, que tem dezenas de outras caixas dentro de si, que vão saindo umas das outras e formando um rio, um percurso contínuo, onde coerências e contrastes se sucedem como uma serpente que, antes de ser encantada, encanta ela mesma o público.

Usando apenas letras de músicas populares, PP Rangel não as canta e nem as declama. Ele as interpreta como textos dramáticos são interpretados. Há momentos em que duas ou três letras, em sequência, criam um pequeno quadro de ação, de conflito emocional, mas a dinâmica do espetáculo é mantida exatamente pela variedade de tons e ritmos, pelo inesperado e pela riqueza que lhes empresta a interpretação.

Naum Alves de Souza é responsável tanto pela cenografia quanto pelos figurinos: o cenário, um boteco, local historicamente ligado à MPB, com figuras e letras nas paredes claras; já o primeiro dos dois ternos usados pelo intérprete é bege claro e cheio de nomes e trechos do que vai ser apresentado, enquanto o preto, da segunda parte, tem menos escritos. Tudo funciona muito bem, em torno de uma mesa e duas cadeiras de bar, um pequeno espelho de pé, uma poltrona, uma mesinha e uns poucos adereços. A luz de Wagner Pinto é justa e funcional, e a direção musical e os arranjos são de Roberto Gnattali.

A boa execução musical - Lena Verani (clarinete e clarone), Nilze Carvalho (violão e cavaquinho) e Fabiano Salek (percussão) - acompanha o clima das canções e dá muito boa conta dos alguns momentos seus que separam a primeira parte da segunda.

A direção de Naum Alves de Souza dinamiza o espetáculo, com marcas que evitam deixar PP Rangel parado, como se fosse um recital, sem jamais parecerem falsas ou exageradas: a fluência dos movimentos acompanha com acerto o que cada letra em particular evoca.

Pedro Paulo Rangel, mais uma vez, mostra a amplitude de seu talento e seu surpreendente domínio técnico da interpretação. Há uma vasta gama de entonações, ritmos, volume vocal, e até mesmo de sotaques, que não deixa a momento algum de estar amparada por emoções tão variadas quanto são os seus recursos técnicos. O ator diz cada letra de música como se fosse um texto dramático, que foi devidamente estudado, analisado, estruturado, o que permite que o texto seja ouvido em seus valores próprios. Esses textos, quando cantados, vivem nos limites permitidos pela música, mas em "SoPPa de letras" eles podem ser expandidos, enriquecidos pela exploração tanto de seus conteúdos quanto de seus valores sonoros.

Trata-se de uma aventura arriscada, que só poderia funcionar com uma interpretação de alto nível, e o trabalho de PP Rangel vai muito além do que seria lógico esperar, com uma atuação preciosa, que abraça o público com seu calor e seu carinho, principalmente porque o ator faz tudo aquilo parecer tão fácil, tão natural... mas, para citar ainda a MPB, "ninguém sabe o trabalho que dá". "SoPPa de letra", afinal, faz-nos descobrir a riqueza de letras, apresentadas em sua melhor interpretação possível.

4. A festa do talento de Marco Nanini. Triunfo da teatralidade em peça feita de episódios impactantes. "Um circo de rins e fígados", com Marco Nanini. Criação e direção de Gerald Thomas (publicado em 7/8/2005)

Com "Um circo de rins e fígados" Gerald Thomas procurou expressar todo o caos, as dores, os desencantos, os medos, os desesperos, as torturas, as perplexidades, o negativismo, o desatino que o mundo e o Brasil têm conhecido desde a Segunda Guerra Mundial.

O caminho que o autor buscou foi detonado, segundo declara ele, por uma quantidade assustadora de caixas que um passageiro tentava embarcar em um avião, em Nova York, a caminho do Brasil.

A pura quantidade de caixas desfiava a curiosidade de quem testemunhava o episódio, e muito embora Thomas tenha deduzido que a única resposta a qualquer indagação seria a da simples muamba, em sua criação ele as transforma em caixas de Pandora, de onde saem todos os vícios e os desesperos do mundo que nos cerca, graças à sua quase infalível intuição teatral.

O resultado é uma grande colcha de retalhos, formada por episódios desconexos, mas altamente impactantes, aos quais a pura teatralidade empresta organicidade, sentido e dimensão.

Volta e meia o episódio perde fôlego e aparece uma espécie de interlúdio que enche o tempo até a imaginação tornar a pegar fogo, e é preciso notar que o humor de ideias e a comicidade física são muito bem usados.

A encenação de "Um circo de rins e fígados" é despojada, quase austera: em um fundo liso são projetados alguns desenhos de Thomas, que podem ou não ter ligação com o que acontece, mais uma cama, uma mesa, algumas cadeiras e muitas caixas.

A luz e a trilha sonora servem muito bem ao projeto todo. Os figurinos de Antonio Guedes, que beiram o clownesco para o protagonista, são devidamente violentos para o mundo inimigo, e imaginativos para o mundo sonhado. A direção de Gerald Thomas é determinada pela intenção de seu texto, e pelo ótimo uso do material humano que tem a seu dispor.

Fabiana Guglielmetti faz razoavelmente toda uma série de pequenos papéis, enquanto Amadeo Malounier, Pedro Osório, Gustavo Wabner, Gilson Matto Grosso, Beto Galdino, Willian Ramanausakas, Rodrigo Sanchez e Narciso Tosti formam, em bloco, as forças mais assustadoras do mundo contemporâneo com rendimento interessante.

Mas não pode haver dúvida de que "Um circo de rins e fígados" não seria o que é sem Marco Nanini, que tem aqui uma das mais brilhantes atuações de sua já brilhante carreira. Com um ator desse calibre em mãos, Gerald Thomas teve a liberdade de criar um sem-número de desafios, aos quais o talento de Nanini corresponde, provavelmente ainda muito melhor do que o autor teria ousado sonhar.

"Um circo de rins e fígados" é o triunfo da teatralidade e a festa do talento do ator.

5. Um ator em momento memorável. "Eu sou minha própria mulher", com Edwin Luisi. Texto de Doug Wright, direção de Herson Capri (publicado em 27/5/2005)

Se algum dia um autor de ficção inventasse a história de Lothar Berfeld/Charlotte von Mahlsdorf, é mais do que provável que o acusassem de exagerado e implausível. O fato de Doug Wright ter escrito a respeito de uma pessoa que realmente existiu e viveu nos termos que agora são apresentados no palco torna seu texto bem mais interessante, já que trata de fatos concretos, mesmo que implausíveis. Compactando a história dessa espantosa vida de modo a permitir que um só ator (ousado e talentoso, é verdade) pudesse viver as dezenas de personagens de ambos os sexos envolvidas na trama, Wright sacrifica detalhes - não deve ter sido tão fácil quanto aparenta o dia a dia da sobrevivência ao longo dos anos de nazismo e comunismo - a fim de poder fabricar uma linha de ação dramática formada por selecionados momento significativos.

Em matéria de monólogo, e com as clássicas limitações do monólogo, "Eu sou minha própria mulher" deve estabelecer algum tipo de recorde de número de personagens, entre protagonistas e elenco de apoio, oferecendo com isso uma tentação e um desafio para qualquer ator, que precisa detalhar com infinito cuidado a identificação de cada um dos participantes.

O espetáculo em cartaz na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon é realizado com cuidado e contenção em todos os seus aspectos. O cenário negro de Marcelo Marques -- onde aparecem apenas alguns objetos escolhidos para sugerir o tipo de coleção existente no museu de Charlotte e lindamente completado pela caixa com miniaturas nas quais temos de sentir a presença dos tamanhos reais - é exemplar como moldura para a montagem em que a imaginação é chamada a colaborar nas mudanças de vida e de ambiente. O figurino do protagonista, igualmente negro e também de Marcelo Marques, resolve com pleno sucesso a questão da ambivalência sexual de Lothar/Charlotte. Tudo isso é muito bem servido pela luz de Paulo César Medeiros e pela trilha de Jerry Marques.

A direção de Herson Capri (com a colaboração de Susana Garcia) é enxuta, comedida, com atenção para marcas que permitam a Edwin Luisi fazer com clareza e fluência a contínua mudança de personagem. Como o autor faz a difícil opção de não omitir nada, a direção cuida para ser também objetiva, e não procura tomar partido ou julgar o/a protagonista.

Edwin Luisi tem um trabalho de alta categoria, cujo maior mérito é a justa medida de tom e gesto nas incontáveis composições que chegam ao requinte de variar sotaques, falar bom e mau alemão. Essa justa medida de tom e gesto na criação de Lothar/Charlotte é impecável, pois se apoia exclusivamente em pequenos detalhes de postura, gesto e timing para dar plena vida a essa fascinante protagonista.

Não diria que o texto de Doug Wright seja realmente memorável, mas a atuação de Edwin Luisi, sem dúvida, é.

6. Atuação para se guardar na memória. "A última gravação de Krapp" e "Ato sem palavras 1", com Sérgio Britto. Textos de Samuel Beckett, direção de Isabel Cavalcanti (publicado em 8/8/2008)

Com seu espetáculo de dois textos de Samuel Beckett ("A última gravação de Krapp" e "Ato sem palavras 1"), Sergio Britto está comemorando nada menos que 60 anos de carreira.

No histórico "Hamlet" de 1948, ofuscado pelo esplendor da estreia de Sergio Cardoso, Sergio Britto iniciava sua memorável carreira de homem de teatro sem maior brilho. Mas ele tinha tempo, paciência e implacável determinação para desenvolver seu talento: em 1954, no Delfim de "O canto da cotovia", já aparecia um novo ator, uma atuação marcante. E, nos anos do Teatro dos 7, ele foi o charmoso "galã" de "O mambembe" e apresentou um impecável trabalho, junto com Ítalo Rossi, nos dois velhos do entremês de Cervantes ("Festival de comédias").

Poucos atores poderão igualar Sergio Britto em sua imersão total na vida do teatro, pois ele atuava, ensinava, dirigia, estimulava, e creio que sorvia e assimilava todas as grandes atuações que via em sua memorável coleção de vídeos (e, agora, DVDs). A carreira já estava sólida quando, em 1970, ele enfrentou Beckett pela primeira vez, e sua atuação naquela montagem de "Fim de partida" foi de primeira ordem. Em 1985, sua participação no "Quatro vezes Beckett" já foi excepcional, e Sergio continuou a viver teatro, estudar teatro, sonhar com teatro, aprimorar-se em teatro. Sem exibicionismos, mas com constância e implacável dedicação, Sergio passou a se afirmar cada vez mais.

Chegamos, então, após 60 anos de trabalho, ao novo Beckett, e não há como não dizer que em tudo e por tudo o espetáculo nos mostra a total realização de Sergio Britto como ator e homem de teatro. As duas interpretações — e são completamente diversos os dois personagens — são, sem dúvida, o coroamento de uma carreira, um trabalho exemplar, simples, sutil, nuançado, justo, juntando-se àquele pequeno grupo de atuações que guardamos na memória porque nos comovem e enriquecem.

A encenação de "A última gravação de Krapp" e "Ato sem palavras 1" é muito bem cuidada: a cenografia de Fernando Mello da Costa acerta tanto na austeridade da primeira quanto na inventividade da segunda, e os figurinos de Ney Madeira são precisos. A luz de Tomás Ribas faz bela contribuição para as duas peças, e a música e sonoplastia de Tato Taborda também.

A direção de Isabel Cavalcanti tem o mérito de levar Sergio Britto a apresentar suas duas belas interpretações, evocando os universos de Beckett que, em tons bem diversos, com emoção e riso, expressam tão bem suas indagações sobre a reflexão e a solidão do homem.

O espetáculo em cartaz no teatro do Oi Futuro, no Flamengo, é obrigatório para todos os que amam o teatro, e uma comemoração inesquecível do brilho da maturidade do ator Sergio Britto.

7. Debora Duarte brilha ao rimar humor e dor. "Adorável desgraçada", com Debora Duarte. Texto de Leilah Assumpção, direção de Otávio Müller (publicado em 13/11/2009)

Débora Duarte está interpretando no Teatro Solar de Botafogo o monólogo "Adorável desgraçada", de Leilah Assumpção, prêmio de melhor texto de 1994 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). O monólogo é um excepcional exemplar de veículo para intérprete, contando com brilho, humor e dor a biografia de Guta, a pequena e feiosa Augusta, que no momento espera a visita — após sete anos de silêncio — de sua alta e bonita "melhor amiga", Maribel. Tímida, religiosa, pudica, Guta passa a vida perdoando os incontáveis e bem-sucedidos "maus passos" da amiga, perdão esse que na realidade vai acumulando um vasto acervo reprimido de inveja, ressentimento e condenação moral e religiosa. A solidão de Guta é patética, mesmo quando descrita com muita graça, enquanto os delírios da interpretação pessoal do que seja a religião são muito bem usados para construir a personalidade da protagonista, misturados com seus fervorosos sonhos de felicidade pessoal e, admitamos, desgraça alheia.

A encenação de "Adorável desgraçada" é exemplar : a direção de arte de Bia Lessa é irretocável, seja pelo belo cenário que fala de preservação de um mundo retrógrado, com o requinte da cortina de chuva que completa o isolamento, seja pelo figurino, uma simples camisola coberta por um robe decorado com anjos e santos, lindo e definidor da personagem. A luz de Lauro Escorel é de primeira qualidade, enriquecedora e imaginativa, e o mesmo se deve dizer da trilha de Dany Roland.

A direção de Otavio Müller é excelente, precisa, aproveitando da melhor forma o material que tem em mãos, texto e atriz.

E que atriz! Após longa ausência dos palcos cariocas, Débora Duarte volta com um trabalho maravilhoso. Quando sobe a luz e ela entra para "apresentar" os vários personagens da ação, já chega o impacto de uma atriz que sabe o que faz, que o faz muito bem e que abraça a plateia para incorporá-la ao círculo de mágica de seu trabalho. A criação de Guta é um trabalho de ourivesaria, rica em detalhes e autocrítica, pensada, controlada, que nos apresenta uma patética figura humana que, usando muito bem o texto, consegue reunir em uma só todas as solitárias Gutas interioranas que vivem na cidade grande presas aos valores trazidos de casa.

O texto e a encenação de "Adorável desgraçada" têm grandes qualidades. Mas são, em última análise, a bela moldura para o brilho da atuação de Débora Duarte, sem dúvida um dos grandes trabalhos do ano, sendo adorável, desgraçada e divertida.

8. O implausível contado com talento. "Gloriosa", com Marília Pêra. Texto de Peter Quilter, adaptado por Claudio Botelho. Direção de Charles Moëller e Claudio Botelho (publicado em 15/1/2009)

Nem sempre as lendas tratam de princesas adormecidas; no folclore nova-iorquino, uma das mais pitorescas é a de Florence Foster Jenkins, motivo de piadas e risos com o sucesso de seus recitais beneficentes. O que a tresloucada milionária pensava estar cantando e o que ela efetivamente emitia com sua voz tão potente quanto desafinada eram coisas completamente diversas, e ela destruía as mais belas e difíceis árias de ópera com um entusiasmo e um amor fenomenais.

O espetáculo que inaugura o Teatro Fashion Mall tem por base um texto de Peter Quilter, que elabora uma divertida (e dolorosa) passagem pela carreira da famosa não-cantora, com fluente tradução de Marisa Murray, adaptada para esta montagem por Cláudio Botelho. Com a ação fortemente centrada na figura da milionária americana, os episódios são ligados por um narrador e contam com pequenas interferências de outros personagens. A história da cantora Florence é tão extraordinária que se torna indispensável conhecer sua personalidade a fim de se poder aceitar os fatos — e o texto faz essa apresentação compactada de forma leve e divertida, e inclui o final de modo tão inesperado e chocante quanto ele foi na vida real.

A encenação de "Gloriosa" é exemplar: a cenografia de Rogério Falcão detalha bem o clima de ilusão e sonho em que vive a cantora, sendo despojado e evocativo para os outros ambientes. Os figurinos de Kalma Murtinho são um capítulo à parte, de categoria e requinte em tudo e por tudo excepcionais, tanto em forma quanto em conteúdo significativo.

A luz de Paulo Cesar Medeiros é de alta qualidade, assim como o desenho de som de Marcelo Claret. A execução ao piano de Silas Barbosa oferece o apoio preciso e corajoso aos desmandos da cantora.

A dupla direção de Charles Möeller e Cláudio Botelho é primorosa, elaborando a ação e a personalidade da protagonista de modo a dar plausibilidade cênica ao que, mesmo sendo verdadeiro, parece realmente implausível.

Eduardo Galvão interpreta com segurança o pianista que, do horror inicial, chega à afeição e compreensão do caos musical que é sua empregadora. Guida Vianna se sai bem na empregada mexicana, porém soa um tanto falsa tanto como a amiga quanto como a indignada espectadora.

Tudo isso, no entanto, é apenas o que cerca a magistral atuação de Marília Pêra, que transmite a infantil e imbatível alegria dessa perturbada Florence, absolutamente convencida de que é melhor que Galli-Curci, admirada por Cole Porter e que rivaliza com Frank Sinatra em popularidade. Para uma cantora tão afinada quanto Marília não é fácil executar os delirantes desafinos de sua personagem, e é realmente um prazer vê-la transmitir a deslumbrada ingenuidade desse estranho acidente de percurso que se chamava Florence Foster Jenkins; com Marília Pêra, podemos compreender o fascinante mistério desse episódio da vida americana, e só podemos desejar que o original tenha sido pelo menos tão atraente em suas atuações. "Gloriosa" é um semimusical encantador, divertido e até emocionante.

9. Texto + ator: experiência imperdível. "In on it", com Emilio de Mello e Fernando Eiras. Texto de Daniel McIvor, direção Enrique Diaz (publicado em 29/3/2009)

Nada como o prazer de ver mais uma vez comprovado, em cena, que o melhor teatro é feito de texto+ator, tratando da condição humana. "In on it" ("Por dentro"), do canadense Daniel Macivor, até hoje desconhecido entre nós, tem toda a liberdade formal do mundo contemporâneo e cria seus próprios caminhos, a fim de compor um todo uno e significativo, que oferece ao público uma excepcional experiência estética, emocional e intelectual. A ambiguidade da palavra play — peça, jogo, interpretar, brincar — é exemplarmente explorada por dois elementos, "Este Aqui" e "Aquele Ali", que atuam, entram e saem do jogo cênico, com perfeita e lógica fluência. O tema é simplesmente a vivência humana, a inter-relação de um pequeno grupo, no qual o homossexualismo não é defendido nem atacado, apenas existe como um dos componentes da complexidade geral. A tradução de Daniele Ávila muito contribui para a qualidade do espetáculo.

A encenação de "In on it" é simples, centrada em texto e ator. A cenografia de Domingos de Alcântara é austera, os figurinos de Luciana Cardoso também são tão simples quanto o texto exige. A luz de Maneco Quinderé pulsa com a ação, a trilha de Lucas Marcier é discreta, e o conjunto Valéria Campos, Mabel Tude e Márcia Rubin é responsável pela rica linguagem corporal dos atores.

A direção de Enrique Diaz é impecável: identidade física, andamento, aproximações, afastamentos, tudo está sob controle, mas com toda a liberdade de que o ator precisa. É óbvio que há uma grande conivência entre diretor e elenco em relação ao tipo de vida cênica que deve ser dado ao belo texto de Macivor.

Do mesmo modo que a direção opta por encontrar a vida específica do texto, os dois atores que compõem o elenco apresentam a mesma conivência ao fazerem de suas interpretações partes complementares uma da outra: do mesmo modo que entram e saem da ação, ou que mudam de personagem, Fernando Eiras e Emilio de Mello "brincam" com a emocionante seriedade desse quadro de vida com uma segurança notável.

É impossível, como resultado, avaliar ou comparar o trabalho dos dois atores. Eiras e Mello, juntos, compõem o universo desse original "In on it", tendo a mesma generosidade um para com o outro, que exibem, fartamente, em sua comunicação com a plateia.

O texto de Macivor é complexo? Sem dúvida, mas os dois atores, guiados pelo diretor, abrem um caminho cristalino para o espectador com suas atuações impecáveis.

Esse é mais um espetáculo de excepcional qualidade, imperdível, apresentado no Teatro Oi Futuro.

10. Um trabalho exemplar. "Simplesmente eu". Clarice Lispector, com Beth Goulart. Texto de Beth Goulart, direção Beth Goulart com supervisão de Amir Haddad (publicado em 30/8/2009)

A obra de Clarice Lispector tem sido motivo para vários espetáculos (quase todos monólogos), mas "Simplesmente eu. Clarice Lispector", de Beth Goulart, em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), encontrou um caminho que o distingue de seus antecessores: trabalhando tanto com a obra da escritora quanto com sua biografia e informações obtidas daqueles que de perto a conheceram, a atriz (agora também autora e diretora) criou um texto que — cenicamente, é claro — é dito pela própria Clarice, seja em sua própria pessoa, em entrevistas e cartas, seja como intérprete pessoal dos personagens que criou.

A fim de alcançar seu objetivo, Beth Goulart não só costurou com muita habilidade os depoimentos e as citações, compondo uma espécie de ampla revelação de vida e processo criativo, como trabalhou, com visagismo e figurinos, a figura da escritora, seu porte e seu gestual (elaborados por Márcia Rubin). Mais ainda, foi adotado o pessoal modo de falar de Clarice, justificando plenamente assim o título do espetáculo.

A seleção dos textos literários foi cuidadosa, toda ela pensada em termos desse objetivo de dar vida à imagem da escritora, com atenção para aqueles que melhor parecem ilustrar o que ela diz de sua obra quando fala em sua própria pessoa. Um trabalho exemplar.

A encenação tem o mérito de ilustrar o quanto seria requintado um "simplesmente" de Clarice Lispector. O cenário de Ronald Teixeira e Leobruno Gama — uma circular cortina de tiras brancas (com o brilho do plástico), um piso claro — abriga poucos elementos de mobiliário, todos com as linhas dos anos 1950 ou 60, e revive a época do grande florescimento da escritora. E, com o mesmo objetivo, os irretocáveis figurinos de Beth Filipecki, trocados e alterados com grande facilidade, evocam-lhe a discrição e a elegância. A luz de Maneco Quinderé é de primeiríssima qualidade, completando a cenografia com toda a variedade de luminosidade, sombra e clima que seriam necessários.

Consta no programa que a direção de Beth Goulart teve a supervisão de Amir Haddad, porém este deve ter encontrado bem pouco para alterar em um projeto que em tudo e por tudo expressa a paixão e o trabalho da pesquisadora/autora/diretora/atriz, que a cada trabalho vem mostrando maior aprimoramento, que rende atuações de primeira ordem.

"Simplesmente eu. Clarice Lispector" é um espetáculo e uma atuação dos melhores que a cidade tem visto nos últimos tempos.

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Presidente francês arrisca compartilhar o poder com um governo de ideologia política diferente, a menos de um mês do início dos Jogos Olímpicos de Paris 2024

Entenda decisão arriscada de Macron para antecipar eleições na França

País registrou 40 incêndios só no sábado (29); previsão é que novos desastres ambientais voltem a acontecer neste domingo

Com novo incêndio florestal, Grécia soma dezenas de queimadas e espera verão complicado

Prefeito inaugura complexo habitacional ao lado de Lula na Zona Oeste

Em entrega de obra na Zona Oeste, Eduardo Paes agradece a Lula e fala sobre 'quedinha especial' do presidente pelo Rio

Lucinha é denunciada por fazer parte da milícia de Zinho, na Zona Oeste do Rio

Junior da Lucinha, filho de deputada acusada de integrar grupo criminoso, participa de evento com Lula em área de milícia

Os dois ex-executivos, Anna Saicali e Miguel Gutierrez, estão no exterior. Anna entregará passaporte à PF, enquanto Miguel terá que se apresentar a cada 15 dias às autoridades policiais da Espanha

Americanas: Veja os próximos passos para os principais suspeitos da fraude

Miriam Todd contou seus segredos em um programa de TV: manter-se ativa é um deles

Com 100 anos, mulher que trabalha seis dias por semana revela seu segredo de longevidade: a alimentação