Teatro
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Por O GLOBO

Uma das questões que mais angustiavam Bárbara Heliodora era a da dramaturgia. Para ela, poucos romances e poemas sobrevivem bem quando levados ao palco, e ela abominava o que chamava de modismo da adaptação. Aproveitava o espaço da crítica para discutir o que era e o que não era teatro, mas não se furtava em aplaudir quando o resultado a surpreendia. Abaixo, alguns exemplos de textos não teatrais que deram certo ao serem apresentados ao público, como o do "Livro de Jó", adaptado por Clara Góes e dirigido por Moacyr Goes, e "O que diz Molero", encenado por Aderbal Freire-Filho. Há também exemplos de montagens que sucumbiram à carpintaria teatral. (Nani Rubin)

  1. A poesia da Bíblia sob implacável reflexão. "O livro de Jó". Adaptação de Clara Góes, direção de Moacyr Góes
  2. Fernanda redescobre Adélia Prado. "Dona Doida, um interlúdio". Compilação de trechos da obra de Adélia Prado, direção de Naum Alves de Souza
  3. Um monstro sob direção primária e diálogos indigentes. "Frankenstein", adaptação de Sidnei Cruz do romance homônimo de Mary Shelley, direção de Angela Leite Lopes
  4. Romance estava mais bem servido no papel. "Os ratos", adaptação de Claudio Cruz para o livro de Dyonélio Machado, direção de Nestor Monastério
  5. Um texto que só funciona em letra de forma. "Por mares nunca dantes navegados", adaptação de poema de Geraldo Carneiro idealizada por Marcia Moraes
  6. Quatro horas de uma peça memorável. "O que diz Molero", romance de Dinis Machado levado à cena por Aderbal Freire-Filho
  7. Uma interessantíssima experiência do uso da palavra. "Utopia", encenação de Moacyr Chaves para a obra homônima de Thomas More
  8. Poesia e teatro fluem como se fossem feitos um para o outro. "Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar", dramaturgia de Walter Daguerre sobre texto de Maria Helena Kühner a partir da obra de Ana Cristina Cesar, com Paulo José
  9. Quando se faz teatro sem um texto para teatro. "Sobreviver nos dias que correm", a partir de contos de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, dramaturgia e direção de José Mauro Brant
  10. Por que encenar Bartleby? "Bartleby, o escriturário", adaptação de João Fonseca da novela de Herman Melville, direção de João Batista

1. A poesia da Bíblia sob implacável reflexão. O livro de Jó. Adaptação de Clara Góes, direção de Moacyr Góes (publicado em 19/10/1993)

É particularmente instigante a ideia de entregar as reflexões dos pensadores bíblicos a sofridos nordestinos cuja sapiência nasce do contato diário com situações extremas, em que vida, morte, fé e integridade pessoal emulam muito as condições de "O livro de Jó". A bela adaptação do texto bíblico por Clara Góes é óbvia obra de poeta, embora poeta sem experiência de escrever para o teatro, o que acaba sendo refletido pela própria encenação do mesmo por Moacyr Góes. Mesmo com os cortes de personagens e cenas que constam na íntegra da adaptação (impressa no programa), esse "O livro de Jó" começa com uma brilhante recriação da linguagem e dos ritmos da literatura de cordel de linguagem cênica rica e envolvente, que convida a plateia à conivência, ao contato com temas cruciais por vias inusitadas, por um canal que reconhecemos em nossa humanidade como caminho menos árduo para uma reflexão em profundidade. Para a escritura poética, na página escrita ou impressa, a mudança de tom e versificação no tratamento da experiência específica de Jó parece estimulante pela variedade; mas em termos teatrais, o abandono do cordel, a opção por uma prosa poética na situação central da obra desaponta, porque repentinamente é cortado o clima de intimidade criado na primeira parte: a linguagem cênica, acompanhando a mudança na forma do texto, fica distante, formal, proi- bitivamente professoral.

Na encenação de "O livro de Jó" tudo em cena fala da implacável miséria tanto de Jó quanto do nordestino: um palco em que a própria cenografia (de José Dias) mostra suas entranhas, privada de qualquer decoração fora do alcance do universo de pobreza apresentado e exibindo a funcionalidade dos recursos usados, informa o espectador e tem sua própria beleza austera. Quando sobe a luz, dois homens, dois atores, sentados e de mãos dadas, também falam de pobreza, de uma condição humana de privação e solidariedade. A música de Wagner Tiso tem nesse início, com uma espécie de xaxado minimalista, seu melhor momento (os episódios seguintes são bem menos interessantes), e a luz do próprio Moacyr Góes capta o intenso sol do Nordeste.

Toda a encenação, como sempre no trabalho do diretor, é dominada pelas linguagens visuais e pela exploração do potencial corporal dos atores: durante toda a primeira parte do espetáculo, enquanto é usada a forma do cordel, a encenação corresponde ao clima do texto, com Leon Góes e Floriano Peixoto conseguindo transmitir com sua dança a ideia de, na indigência total, o nordestino recorrer ao próprio corpo para expressar uma teimosa alegria que insiste em existir quando tudo em volta sugere o desespero, metáfora mais do que apropriada para "O livro de Jó". Correspondendo exatamente às mudanças estilísticas do texto, Moacyr altera a linha da interpretação no segmento crucial do diálogo entre Jó e seu amigo (que sintetiza os três da Bíblia), ralentando o ritmo, quase imobilizando os ato- res, e com isso desmobilizando a cumplicidade entre palco e plateia que fora tão claramente estabelecida na parte inicial. Do ponto de vista teatral, é um desapontamento, mesmo que o cuidado com o trabalho continue impecável e tudo seja efetivamente a transposição cênica, visual, das alterações na forma do uso da palavra.

Leon Góes e Floriano Peixoto são os atores mais permanentemente identificados com o trabalho de Moacyr Góes e ambos vêm evoluindo. Leon sempre teve excepcional domínio corporal, e neste "Jó" Floriano conseguiu atingir maior leveza no aproveitamento de seu físico mais pesado. A Floriano é entregue a tarefa mais árdua de interpretar os longos quase-monólogos de Jó, e seu progresso na interpretação é claro. Leon é responsável por trabalho ainda mais cerceado pela direção (no amigo/contestador), mas ambos se entregam à difícil execução com exemplar disciplina, mesmo que não consigam superar todas as limitações impostas. No todo, trata-se de uma encenação inteligente e bonita, que sofre apenas das dificuldades criadas por sua própria seriedade.

2. Fernanda redescobre Adélia Prado. Dona Doida, um interlúdio. Compilação de trechos da obra de Adélia Prado, direção de Naum Alves de Souza (publicado em 25/7/1994)

A breve temporada popular de "Dona Doida" no Teatro Carlos Gomes nos oferece uma rara oportunidade de curtir o amadurecimento de um espetáculo: são múltiplos e mais do que comuns os casos em que o desgaste, o cansaço, quase que a anestesia, acabam marcando espetáculos de carreiras muito longas (razão principal das periódicas trocas de elenco nos mega musicais anglo-americanos), o que os deixa mecânicos e inexpressivos. No caso de "Dona Doida" aparece — felizmente para todos nós — a exceção, o espetáculo que ao fim de cerca de sete anos se apresenta com a mesma paixão e frescor que caracterizaram a atuação de Fernanda Montenegro na estreia, mas que mudou um pouco de tom, ficou mais ágil, mais detalhado e alegre, porque Fernanda nunca deixou de "descobrir" o texto, de explorar suas potencialidades.

É óbvio que "Dona Doida" é um caso muito excepcional; de várias obras de Adélia Prado foram colhidos trechos, em verso ou prosa, que reunidos não formam por certo uma peça de teatro mas formam com segurança o dinâmico conjunto de reflexões de uma mulher e uma mulher brasileira sobre o que há de mais simples, mais básico, mais essencial e mais transcendente em sua vida cotidiana: a intimidade com Deus, o amor ao marido, aos filhos e ao ser humano, os tropeços do dia a dia, os tropeços da criação, o machismo do mundo etc.

A obra de Adélia Prado, assim como o espetáculo dirigido por Naum Alves de Souza e interpretado por Fernanda Montenegro, tem a qualidade maior de envolver toda a sua elaboração com um aspecto de simplicidade que estabelece comunicação imediata com seu leitor e, aqui, com o espectador; tocando em pontos sensíveis da experiência humana, "Dona Doida" chama para si plateias de todo o Brasil e, extrafronteiras, todas as que a língua portuguesa alcança. Um dos segredos do espetáculo está no despojamento da cenografia de Naum — a janela/porta da qual a mulher olha o mundo, dois praticáveis que permitem uma tranquila variedade de posturas para a reflexão. A iluminação de Maneco Quinderé é contribuição inspirada, e a trilha sonora de Xodó se mantém discreta como deve.

Mas é a simbiose de Fernanda Montenegro com o universo de Adélia Prado que permite que o texto se torne uma experiência teatral autêntica, mesmo que o personagem de Fernanda, apenas "uma mulher", não fique identificado, porém seja magistralmente individualizado pela capacidade da atriz de tornar absolutamente seus os pensamentos e as emoções que Adélia Prado expressa em sua obra.

O tom de "Dona Doida" se tornou mais leve, mas não pense ninguém que por qualquer preocupação exterior de torná-lo mais "popular" ou coisa no gênero: ao longo desses anos, Fernanda pensou mais profundamente sobre o texto e sua melhor compreensão, suas continuadas descobertas, lhe trouxeram a alegria que Adélia Prado tão claramente sente em ser apenas, mas plenamente, uma mulher brasileira. É de se ver e rever.

3. Um monstro sob direção primária e diálogos indigentes. Frankenstein, adaptação de Sidnei Cruz do romance homônimo de Mary Shelley, direção de Angela Leite Lopes (publicado em 30/10/1995)

As fases mais desmedidas do romantismo sombras, fantasmas, visões são responsáveis pelo roman gótico inglês que produziu o "Frankenstein" de Mary Shelley, único dos romances de terror da época (1817) ainda gozando de alguma fama. Paradoxalmente, na Inglaterra o gênero do terror mesclava-se com preocupações filosofóides e/ou pseudocientíficas, além de humanitárias. O maior problema da adaptação de Sidnei Cruz é a tentativa de preservação de todas estas linhas mescladas no romance, aparentemente na convicção de que teria maior dimensão o tipo de reflexão bastante rotineira que Mary Shelley usou por estar na moda. A estrutura em pequenas cenas resulta cansativa porque o interesse está diluído, além de reduzir o terror a um retrato mais patético do monstro.

A cenografia de José Dias seria exemplar se fosse mecanizada, ele cria ambientes os mais variados com poucos elementos, mas quando tudo é empurrado manualmente fica um clima meio emergencial, de que não era para ser assim. Os figurinos de Lola Tolentino são muito bons (e corretos para a época) e a luz de Rogério Wiltgen funciona bem. A música de Wagner Campos desliza várias vezes pelo exagerado e óbvio.

A direção de Angela Leita Lopes é primária, incapaz de criar tensões ou climas, com frequentes marcas operísticas de todos parados, olhando para a frente, o que agrava muito a indigência do diálogo de Cruz. Tudo leva a um espetáculo que caminha lentamente e aos trancos, que já se concentrou demais na vida do médico quando surge a criatura, e não consegue então saber se quer falar de um ou de outro.

Marcelo Escorel e Edney Giovenazzi, mesmo mal conduzidos, são os que rendem melhor, seguido de Edmundo Lippi. Glaucia Rodrigues está fraca, mas Alexandre Padilha e, particularmente, Ana Beatriz Wiltgen são piores do que infelizes. Também fracos os outros, mas em grande parte é a direção que tem de ser responsabilizada pelo desapontamento que é "Frankenstein".

4. Romance estava mais bem servido no papel. "Os ratos", adaptação de Cláudio Cruz para o livro de Dyonélio Machado, direção de Nestor Monastério (publicado em 7/7/2001)

Com "Os ratos", produção gaúcha em cartaz no Glauce Rocha por iniciativa da Funarte, mais uma vez se levanta o problema da transposição de uma obra bem sucedida para outra forma de arte. Mesmo não tendo lido o romance de Dyonélio Machado, é possível perceber que os seus méritos estão no talento do autor para descrever e evocar os vários ambientes por que passa seu protagonista, em busca do dinheiro que deve ao leiteiro; e tais qualidades, de dificílima transposição, o adaptador Cláudio Cruz não conseguiu captar ou transmitir.

O diretor Nestor Monastério, por sua vez, tenta por vezes captar o que faz o romancista por meio de uma espécie de pequenas cenas de mímica, porém com pouca inspiração ou variedade. Se no romance o clima é de tragicidade, se é criado um clima de desespero provocado pela busca da fatí- dica quantia que impedirá que o leite seja cortado, tudo isso desaparece pela surpreendente lentidão do espetáculo: é tão relaxada e vagarosa a interpretação do protagonista que qualquer ideia de urgência desaparece, e seus fracassos vão ficando repetitivos e entediantes, perdida a noção de sua importância. E a adaptação realmente não ajuda; inclusive, quando começa a se referir aos valores monetários, então mil réis, apenas como mil, tanto a noção da época quanto a dos valores envolvidos se perdem.

O elenco, todo ele muito modesto em seu rendimento cênico, é formado por Dejayr Ferreira, Karen Radde, Lauro Ramalho, Luciana Kunst, Marcelo Casagrande, Rogério Beretta e Zé Roberto Amaro (sem indicação de quem faz o que); o cenário de Monastério e Paulo Balardin tem certo encanto de época mas permanece neutro demais; já os figurinos de Malú Rocha têm vários bons e alguns maus momentos. O resultado do todo é precário; fica a impressão de que os atores estão todos pisando em ovos, com medo de errar, preocupados em executar o que lhes foi determinado. O romance não foi bem servido.

5. Um texto que só funciona em letra de forma. "Por mares nunca dantes navegados", adaptação de poema de Geraldo Carneiro idealizada por Marcia Moraes (publicado em 4/9/2002)

O poema de Geraldo Carneiro "Por mares nunca dantes" não foi criado para o palco, e sim para a letra de forma, mas é em torno dele que, por ideia e insistência de Márcia Moraes, está sendo apresentado o espetáculo que leva esse título, na Marina da Glória, a bordo do Tocorimé. Lidando com um texto não teatral, o diretor Moacyr Chaves optou por cercá-lo de elementos dinâmicos, inclusive o da peregrinação da plateia por diversos locais. A escuna recebeu no seu interior uma série de elementos coloridos a fim de criar o universo de um pai de santo, e longas tiras de tecido presas à estrutura arma- da nos mastros para servir cenas de acrobacia. Bia e Inês Salgado criaram figurinos desiguais, alguns interessantes (como os dos acrobatas) e pelo menos um de péssimo gosto (a deusa/prostituta), enquanto o iluminador Aurélio de Simoni consegue alguns efeitos de luz muito bonitos, mas nem sempre.

A música de Carlos Cardoso faz contribuição modesta mas evocativa de tempos idos, enquanto o Grupo Afro-Cultural Orunmila é de alta qualidade mas também arbitrariamente incluído.

O grande problema do espetáculo é a proposta em si: o poema simplesmente não é dramático, é narrativo, e não ganha nada com a tentativa de ser encenado. A apresentação inicial de dois acrobatas, por exemplo, que é vista de uma arquibancada erigida no ancoradouro, é muito elegante e atraente, mas não tem rigorosamente nada a ver com o que acontece depois. É só quando o público é convidado a ir para bordo da escuna que começa a apresentação do poema, cuja interpretação é entregue a Tonico Pereira, Orã Figueiredo e Márcia Moraes. Cabe ao primeiro interpretar a figura de Camões em sua imaginada visita ao Rio de Janeiro dos últimos cinco séculos, em episódios que o poeta nos mostra como permanentemente característicos da terra carioca, e Tonico Pereira se desincumbe da ingrata tarefa (ingrata por não se tratar de personagem dramático) com sua conhecida competência, mas talvez exagerando tudo um pouco no desejo de fazer seu Camões ter vida cênica. Orã Figueiredo fica incumbido de fazer toda uma série de papéis masculinos secundários, todos episódicos, nenhum interpretado de modo realmente satisfatório, sempre com rendimento bastante modesto. Márcia Moraes realiza seu sonho de ver "Por mares nunca dantes" montado em sua Tocorimé, mas seu rendimento em cena é fraquíssimo, sempre uma apresentação pessoal, nunca um personagem. Podemos reconhecer que Moacyr Chaves fez um grande esforço para a encenação, mas o projeto não tinha chances, dado que seu destino nunca foi o palco.

6. Quatro horas de uma peça memorável. "O que diz Molero", romance de Dinis Machado levado à cena por Aderbal Freire-Filho (publicado em 22/10/2002)

Está em cartaz no Teatro Casa Grande, de quinta-feira a domingo, um prêmio para quem gosta de teatro: em lugar da triste dieta de monólogos que vem assolando o teatro carioca, "O que diz Molero" é um generoso e suculento espetáculo que, durante quatro horas, faz seis atores conduzirem o espectador por uma delirante viagem pelo mundo dos humanos, das artes, da cultura, do inesperado, do patético, sempre do risível, tudo isso por um mar de palavras magistralmente usadas.

Dinis Machado é autor do romance com o qual Aderbal Freire-Filho realiza um notável trabalho, no qual podemos ver até que ponto o melhor teatro nasce da criatividade orgânica, que transforma em ação cênica um texto, enriquecendo-o e sem procurar substituí-lo, minimizá-lo, desrespeitá-lo. "O que diz Molero" é um rio-mar, onde por sua vez fica provado que saber usar a palavra é saber curti-la, é usar o preciso, até mesmo o óbvio, quando este conduz à imagem mais viva e imaginativa, e ao mesmo tempo inteligível, pronta a dialogar com um imenso espectro de interlocutores.

A "pesquisa" sobre Molero e o que ele nos diz é dividida em três partes, ou atos, que podemos vagamente definir como sendo o primeiro sobre a família e o bairro, o segundo sobre a literatura e o cinema como veículos de descoberta, e o terceiro sobre o mundo e suas riquezas infindas, que só necessitam da curiosidade para serem encontradas.

Não há dúvida de que, ao encontrar esse romance, Freire-Filho tirou a sorte grande, apenas com a ressalva de que isso não diminui de modo algum seu trabalho na criação da versão cênica. A cenografia de José Manuel Castanheira é exemplar: um espaço construído com arquivos de aço e deixando livre todo o centro do espaço cênico oferece, por um lado, a ideia da busca pelo que Molero deixou para nos dizer e a organização de locais diversos; e, por outro, as dezenas de gavetas grandes e pequenas das quais sai a riqueza de material cênico manipulado pelo vasto desfile de personagens. À neutralidade cinza dos arquivos contrapõe-se o colorido dos figurinos de Biza Vianna, que embarcou alegremente pela variedade das soluções simples, tanto quanto pela exatidão do detalhe necessário, ao que se incorporam deliciosamente os adereços de Antonio Carlos Bernardes. A luz clara e exata de Maneco Quinderé e a trilha sonora de Dudu Sandroni completam a linda unidade geral da encenação.

A direção de Aderbal Freire-Filho é memorável: ele manobra seu elenco de seis atores pela vasta população do romance como uma espécie de milagre maroto da multiplicação dos pães, conseguindo variar o tom e o ritmo segundo as necessidades de cada episódio, sem jamais perder o estilo geral do todo, o que não é pouco - e nem fácil. A não ser pela queda dos ultimíssimos minutos para a narração, é espantosa a sustentação da força, da mobilidade e do humor de um espetáculo sem apelações, que mantém sempre na medida a relação entre o texto e sua vida cênica. É um grande trabalho.

De todo o elenco é preciso notar, desde logo, o preparo físico: são quatro horas de delicioso diálogo, no qual o mérito literário não pode ser esquecido em momento algum, vividas com quatro horas de igual atividade física de um teatro antirrealista que depende das atuações de cada um para sustentar sua miraculosa energia, para a criação de um sem-número de personagens diferentes, para unificar essa obra que tem na variedade sua força maior. Todos estão bem, e, se não apontamos algumas atuações como ainda melhores do que outras, é porque a força maior da interpretação está no rendimento conjunto de Augusto Madeira, Cláudio Mendes, Gillray Coutinho, Orã Figueiredo, Raquel Iantas e Chico Diaz. "O que diz Molero" é um grande momento de teatro, uma festa para o espectador.

7. Uma interessantíssima experiência do uso da palavra. "Utopia", encenação de Moacyr Chaves para a obra homônima de Thomas More (publicado em 3/6/2005)

Continua a moda do uso de textos não dramáticos para o teatro. Desta vez, Moacyr Chaves escolheu nada menos nada mais que um dos textos mais brilhantes e críticos de toda a história do Ocidente, a "Utopia" de Sir Thomas More (1478-1535), o chanceler de Henrique VIII, tão integro em sua vida e suas convicções religiosas que foram necessários perjúrios e calúnia a fim de o tribunal poder cumprir o desejo do rei, ex-amigo, de ver More decapitado. Grande advogado, juiz exemplar, chanceler ímpar, que saiu de seu grande posto tão pobre quanto entrou. Durante anos colaborador privilegiado do rei, nunca deixou de ter consciência dos caprichos das amizades reais, tinha amizade mais certa em Erasmo de Roterdam e outros grandes nomes da vida intelectual e acadêmica do reino.

A "Utopia", publicada em latim em 1516, é uma obra-prima de ironia, na qual - em conversa com o fictício marinheiro Ralph Hythlodaye (que teria navegado com Amerigo Vespucci) - compara a vida, as leis, os hábitos da Inglaterra com os da ilha Utopia, de onde desapareceram dinheiro e orgulho, e onde todos trabalham e têm o suficiente para uma vida modesta mas rica em tranquilidade. Escrita em época na qual outros sistemas políticos e sociais ainda eram desconhecidos, no paraíso utópico ainda existem a monarquia e a escravidão.

Na arena do Teatro Maria Clara Machado (Planetário), um chão coberto, dois cubos e duas cordas recobertos de roupas e pedaços de pano formam a fascinante cenografia de Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque. Os figurinos de Inês Salgado são, em sua maioria, bonitos, com um grave tropeço (talvez mais de execução) de um verde com alças douradas, de rara infelicidade. A luz de Aurélio de Simoni é preciosa para o bom uso do espaço, e a direção musical de Tato Taborda é de excepcional qualidade. Tudo isso, é claro, é produto da opção diretorial de Moacyr Chaves, que fez do texto de More a estrela do espetáculo, não recorrendo a adaptações ou à dramaturgia mas, apenas, a uma teatralização, com confiança mais do que compreensível na força da palavra de More.

O início do espetáculo alerta o público para a ideia central da compreensão do texto: os mesmos parágrafos são repetidos, primeiro, pela mesma pessoa, depois, por outras duas, que os encaram por outros pontos de vista. E nesse mesmo episódio inicial estão as qualidades e os tropeços da concepção diretorial. Estes últimos são sempre resultado de falta de medida, como o do riso da segunda intérprete do texto inicial, que de tão exagerado acaba prejudicando a intenção crítica do diretor. E assim acontece em vários momentos, o que resulta em um espetáculo bastante desigual, cheio de boas ideias e maculado pela desmedida. Abrindo mão de qualquer intenção dramatúrgica, cada tema é apresentado em uma "cena" contida em si, e a seguir, com ou sem um intervalo de silêncio, aparece um novo assunto, uma nova crítica.

O elenco é formado por Alessandra Maestrini, Josie Antello, Danielle Barros e Maria Clara Gueiros, seguindo os altos e baixos da própria direção. A primeira e a última são as que apresentam os melhores trabalhos, com Danielle Bastos menos firme e Josie Antello comprometendo a intenção do espetáculo com uma preocupação constante de querer ser engraçada, caindo a todo momento na mera caricatura, sem a inteligência crítica que tanto o texto quanto o espetáculo pedem.

8. Poesia e teatro fluem como se fossem feitos um para o outro. "Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar", dramaturgia de Walter Daguerre sobre texto de Maria Helena Kühner a partir da obra de Ana Cristina Cesar, com Paulo José (também diretor) e Ana Kutner (publicado em 14/11/2009)

O maior mérito da dramaturgia de Walter Daguerre, sobre texto de Maria Helena Kühner, na criação de "Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar" é a habilidade com que se escapa do monólogo sem botar na boca da poeta palavras de outros: o diálogo que se estabelece entre o leitor admirador que começou como antagonista na área da televisão é onírico, feito de indagações provocadas pela leitura, de uma curiosidade sobre os mistérios que não têm mais, para esclarecê-los, a jovem autora que se foi. O resultado dessa intimidade intelectual é um texto de papo entre amigos, no qual a palavra dela é sempre autêntica, mesmo que sempre exatamente adequada à condição de réplica ao que é dito por ele, com deleitável fluência; melhor ainda, esse diálogo inteligente não é pomposo, tem a simplicidade da segurança de quem não tem e nem sente necessidade de provar nada a ninguém, de quem transita livremente pelo universo do pensamento, da cultura em sua melhor e mais ampla concepção.

A encenação desse mundo muito particular é solucionada com o mesmo despojamento buscado pelo texto: o cenário de Fernando Mello da Costa sugere o desprendimento, a indiferença aos ícones do sucesso, sem deixar de ressaltar o prazer pelo risco, pelo intenso mas fortuito. A simplicidade da cenografia fixa é completada pelo vídeo, e raramente ou nunca os dois elementos foram tão bem integrados, formando um todo apto a acompanhar as complexas peripécias do mundo de Ana Cristina César, com a luz de Paulo César Medeiros completando a integração.

A direção de Paulo José nasce de seu conhecimento e sua admiração pela obra de Ana Cristina, descoberta feita depois da época na qual com ela brigava na televisão. Ele transpõe para o pequeno ambiente no novo teatro do Oi Futuro de Ipanema essa amorosa intimidade intelectual que a leitura criou, e é óbvio que tudo ficou ainda mais fluente e informal graças a outra intimidade, a do diretor/ator com sua protagonista/filha Ana Kutner.

O nível da interpretação é privilegiado em função da admiração de diretor/ator e atriz pela obra de Ana Cristina; as indagações são todas autêntica sede de mais e mais compreensão da obra, enquanto as citações das respostas saem todas como falas espontâneas, verdadeiras, provocantes quando é necessário que o sejam. Enfim, "Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar" é um espetáculo inteligente e encantador, com méritos na forma e no conteúdo, pois texto e interpretação se unem para uma ótima experiência teatral, que muito merece o nosso aplauso.

9. Quando se faz teatro sem um texto para teatro. "Sobreviver nos dias que correm", a partir de contos de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, dramaturgia e direção de José Mauro Brant (publicado em 4/7/2009)

Não é fácil identificar as razões pelas quais quem quer fazer teatro não quer usar textos escritos para teatro, mas o fato é que tem sido considerável a insistência de se montar adaptações de contos ou romances, muito embora poucas vezes essas adaptações venham a ser realmente satisfatórias. O caso de "Saber viver nos dias que correm" é peculiar porque não fala em adaptação, apenas ficamos informados, pelo programa, de que a "dramaturgia" é do diretor José Mauro Brant.

Reunindo dois contos — um de Clarice Lispector, outro de Caio Fernando Abreu —, o texto resultante continua eminentemente narrativo, que nas mais das vezes apenas distribui entre seus dois intérpretes frases narrativas e, ocasionalmente, dramatiza pequenos diálogos.

O resultado da soma dos dois contos é um tanto confuso, já que os dois universos originais são bastante diversos, como diversas são as razões para os conflitos entre pais e filhos que neles habitam. Mais surpreendente e menos compreensível, no entanto, é a opção por incorporar à palavra momentos de dança, perfeitamente gratuitos, e a imposição da canção "Que sera sera" como tema. O caso desta última é mais estranho, pois obviamente fala de possibilidades no futuro, enquanto nenhum dos dois contos utilizados para formar o texto apresenta qualquer possibilidade futura: ambos trilham caminhos finais, determinados por seus respectivos passados.

A encenação de "Saber viver nos dias que correm", em cartaz no teatro do Centro Cultural Justiça Federal, é bem apoiada pelo cenário de Ney Madeira, que cria um ambiente que tudo indica servir a ambos os universos do texto e pode com facilidade ser transportado de um para o outro. Os figurinos, também de Ney Madeira, são um pouco menos satisfatórios, mas mesmo assim evocam vidas passadas naquele ambiente. A luz de Renato Machado procura explorar bem o cenário e a modesta ação, mas teve alguns problemas na noite de estreia.

A trilha sonora, que é de Brant, é estranha, como já dissemos.

A primeira direção de José Mauro Brant é modesta e cuidadosa, e, enquanto o peso da natureza narrativa da maior parte do texto leva o diretor a uma movimentação de certa timidez, ele inclui inesperadamente alguns episódios dançados que pouco ou nada têm a ver com o texto resultante da mescla dos dois contos.

Fabrício Polido e Juliana Terra, os dois intérpretes, procuram corresponder emocionalmente ao conteúdo do texto, mas são ambos um tanto mornos em suas atuações, sem dúvida, prejudicados pela carga narrativa. Os contos não foram escritos para o teatro, e isso é a verdade que domina "Saber viver nos dias que correm".

10. Por que encenar Bartleby? "Bartleby, o escriturário", adaptação de João Fonseca da novela de Herman Melville, direção de João Batista (publicado em 29/6/2011)

Há duas tendências fortes do teatro carioca que se manifestam no espetáculo em cena às terças e quartas-feiras no Teatro Laura Alvim: a queda pela adaptação da obra literária, em lugar da apresentação de obras dramáticas, e a não informação a respeito de distribuição do elenco, que afinal era a razão principal do programa. O texto de "Bartleby, o escriturário" é de uma novela de Herman Melville, e é perfeitamente possível que, enquanto literária, a obra se torne fascinante pela habilidade do autor em manipular as palavras, criar tensões, mistérios, riquezas estilísticas e o mais; mas o fato é que Melville não tinha qualquer intenção de ver sua narrativa em um palco. Não só ela é uma obra literária, como uma narrativa de algo já passado, acabado e, infelizmente, para o palco a história de Bartleby não apresenta qualquer interesse maior.

Fica afirmado no programa que a obra tem causado grandes estudos e interpretações em tempos recentes, mas o texto tal como visto em cena não sugere de forma alguma que tenha qualquer mínima influência sobre a obra de Beckett, cujo mistério é sempre prenhe de ação latente, quando ela não é manifesta. A adaptação de João Fonseca faz com que os outros escriturários do escritório de advocacia tenham algumas falas, porém o fato de eles terem essas pequenas falas não lhes dá relevância, não estabelece um clima tenso ou ao menos irritado pela não ação do escriturário do título. Na verdade, após os minutos iniciais fica tudo tautológico, já que não existe nada além da premissa inicial de Bartleby "preferir" não obedecer às ordens do patrão.

A encenação é simples: um cenário de linha expressionista (?), de Doris Rollemberg; figurinos disciplinados de fim do século XIX, de Mauro Leite; luz caprichada, de Renato Machado; música discreta, de Marcelo Alonso Neves. A direção de João Batista fica inevitavelmente presa à mesmice do texto e é, por isso mesmo, repetitiva, mesmo que busque emprestar um pouco de ação por movimentos por vezes desnecessários.

A segunda tendência não revela quem é quem no elenco, e infelizmente só conhecíamos Duda Mamberti, que consegue emprestar certa vida ao advogado. Gustavo Falcão, Claudio Gabriel, Eduardo Rieche e Rafael Leal completam o quadro, todos presos à total falta de interesse que nos oferece o texto de Melville. No programa, há referência aos eternos mistérios ligando grandes romancistas; no caso em pauta o mistério é descobrir por que alguém haveria de se lembrar de botar Bartleby, a essência da não ação, em um palco.

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