Ruth de Aquino
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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

Mais um 8 de março. Mais um motivo de inveja (minha) da França, que se tornou esta semana o primeiro país no mundo a incluir na Constituição o direito ao aborto. Por escolha de consciência. A lei fica, assim, protegida de reviravoltas como as ocorridas nos Estados Unidos.

O Artigo 34 consagra a “liberdade garantida de recorrer ao aborto”. Irreversível. A não ser que se rasgue a Constituição. Ou que se consiga uma votação inversa. A maioria exigida para mudar é de três quintos do Parlamento. O voto, histórico e simbólico, no Palácio de Versalhes, foi arrasador: 780 a favor, 72 contra. Quase unânime.

Na Torre Eiffel, cintilou uma inscrição: “mon corps, mon choix”. Acima do partidarismo e de convicções pessoais, a França garantiu o direito da mulher a seu corpo. A quem acusa Emmanuel Macron de oportunismo num momento delicado, tenho outra opinião. Melhor ganhar popularidade com uma lei do que com uma guerra. Como muitos por aí.

Talvez a história fosse outra na França se uma ministra da Saúde, Simone Veil, não tivesse tido a coragem de enfrentar há 50 anos um Parlamento hostil, praticamente só de homens, com apenas 2% de mulheres eleitas. Era o ano de 1974. Veil, sobrevivente do Holocausto, defendeu com discurso impecável e sereno a legalização do aborto.

Foram 25 horas de debates intensos. Ao final, a lei foi aprovada para que nenhuma mulher fosse presa ou morta por precisar ou desejar interromper uma gravidez na França, primeiramente até 10 semanas de gestação. E nem por isso o número de abortos aumentou entre francesas. Diminuiu. Eram 300 mil abortos clandestinos por ano.

No Brasil, enquanto aborto for considerado uma questão moral ou, pior ainda, uma questão eleitoral, e não de saúde pública, continuaremos a matar, algemar e mutilar milhares de brasileiras. As ricas fazem abortos seguros em clínicas particulares. A maioria absoluta, mulheres pobres, faz abortos clandestinos. É hipocrisia e egoísmo fechar os olhos para essa realidade.

O Brasil só admite aborto em casos de estupro e risco de morte para a mulher, além de casos de fetos anencéfalos. Fora isso, é crime. E mesmo assim, juízes e hospitais conseguem dificultar para meninas a interrupção legal da gravidez.

Existe ainda a mania masculina de ignorar a autonomia feminina nessas decisões. Homens não podem forçar uma mulher a abortar. E nem a ter filhos. Ou a levar uma gravidez até o fim.

Nenhuma de nós é “a favor do aborto”. Mas sim do “direito de abortar” até um período seguro, determinado por médicos. A escolha dificilmente é desprovida de conflito e dor. É infindável o debate sobre o início da vida. Mas a religião não ajuda a jogar luz sobre a discussão. Só a castigar, punir, condenar.

Na mesma semana em que a França deu mais um passo para garantir direitos já adquiridos pelas mulheres, do outro lado do Oceano Atlântico, mais precisamente no Brasil, os amiguinhos do primeiro escalão do governo Lula sugeriram ao presidente que, em discursos, passe a condenar a descriminalização do aborto. Pra ficar bem na fita com religiosos.

Uma vez assisti a um clipe de 30 segundos de uma organização pela saúde de mulheres. Na rua em São Paulo, pedestres são abordados. Você é contra ou a favor do aborto? Contra, dizem todos. Você conhece alguém que já fez aborto? Sim. Você acha que essa pessoa deveria ser presa? Todos emudecem.

É injusto, ineficaz e criminoso submeter mulheres a risco de morte e prisão por abortar. Sempre que escrevo sobre esse assunto, encerro da mesma maneira.

Eu fiz aborto. Não me orgulho, nem me arrependo.

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