Cultura

Prêmio Oceanos consagra 'Torto arado', romance de Itamar Vieira Junior

O baiano levou o primeiro lugar e dividiu o pódio com a portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, campeã no ano passado, e a freira-escritora Maria Valéria Rezende
O escritor baiano Itamar Vieira Junior, autor de "Torto arado", romance vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos Foto: Arquivo pessoal / Divulgação
O escritor baiano Itamar Vieira Junior, autor de "Torto arado", romance vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

SÃO PAULO — Na literatura, não teve para quase mais ninguém: 2020 foi o ano de Itamar Vieira Junior . "Torto arado", romance publicado no ano passado pelo escritor baiano venceu o Prêmio Oceanos (ex-Portugal Telecom), que honra o melhor das literaturas em língua portuguesa. Em 26 de novembro, Vieira Junior já havia levado um dos prêmios mais prestigiosos das letras brasileiras, o Jabuti de Melhor Romance , que catapultou "Torto arado" para a lista de mais vendidos elaborada pelo Publishnews e publicada aos sábados pelo GLOBO.

Antes tarde do que nunca: O aumento da diversidade nas prateleiras das livrarias

Vieira Junior divide o pódio com a portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida ("A visão das plantas"), que tirou o primeiro lugar na edição de 2019 do Oceanos, e Maria Valéria Rezende ("Carta à rainha louca"), freira santista que vive em João Pessoa (PB). O anúncio dos vencedores ocorreu na tarde desta sexta-feira (18) e foi transmitido ao vivo pelo canal do Oceanos no YouTube e no site do Itaú Cultural. Os vencedores enviaram vídeos curtos à organização do prêmio.

Uma das juradas, a crítica literária portuguesa Joana Matos Frias afirmou que "Torto arado" é "um romance raro e arrebatador por ser ao mesmo tempo absolutamente local e absolutamente universal" e o comparou à obra de autores como James Joyce , Gabriel García Márquez e Raduan Nassar ". "Fruto de uma escrita tão límpida que parece ocultar a sua enorme complexidade, 'Torto arado' cumpre acima de tudo um propósito que a muito poucos é dado cumprir: é um livro para ser lido por todos os leitores", completou Joana.

Meu bisavô 'tirailleur': Premiado na França, romance de David Diop resgata a memória de soldados africanos na Primeira Guerra Mundial

"Torto arado" se passa na região da Chapada Diamantina e acompanha descendentes de escravizados que continuam trabalhando em terra alheia sem receber um tostão. Os narradores são três: as irmãs Bibiana e Belonísia e uma entidade do jarê, religião afro-brasileira ainda praticada no interior da Bahia. O romance conquistou primeiros os portugueses. Vencedor do Prêmio Leya de 2018, foi publicado pelo grupo editorial ibérico ainda no início de 2019 e só chegou às livrarias brasileiras meses depois, em edição da Todavia.

'Carta de amor à terra'

No vídeo enviado ao Oceanos, Vieira Junior, que é geógrafo e funcionário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), agradeceu a premiação e descreveu "Torto arado" como "uma história de amor à terra" que ele ouviu diversas vezes de "camponeses, trabalhadores rurais, quilombolas, indígenas, assentados, acampados, ribeirinhos e comunidades tradicionais" enquanto fazia suas pesquisas de campo. "Este livro é um retrato, o meu retrato, do Brasil deste tempo em que vivo, um Brasil que tem uma profunda conexão, ainda, com seu passado mal resolvido", arrematou.

Já Djaimilia Pereira de Almeida conquistou o segundo lugar com "A visão das plantas", publicado em Portugal pela Relógio D’Água e cuja edição brasileira a Todavia promete para o ano que vem. Inspirado num trecho do livro "Os pescadores", do português Raul Brandão (1867-1930), "A visão das plantas" apresenta o ex-pirata Celestino, que a todos assusta com suas histórias e encanta com a beleza de seu jardim.

A escritora portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, autora de "A visão das plantas", em Paraty, em 2017 Foto: Ana Branco / Agência O Globo
A escritora portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, autora de "A visão das plantas", em Paraty, em 2017 Foto: Ana Branco / Agência O Globo

A crítica literária santomense Inocência Mata, jurada do Oceanos, chamou o romance de "reflexão sobre a pós-humanidade". Em vídeo, Djaimilia contou ter inventado o ex-pirata após ler uma crônica na qual Brandão recordava "uma figura que conheceu na sua infância, um homem chamado Celestino, que, tendo tido um passado feroz, selvagem e misterioso, regressou a Portugal, onde terminou seus dias cultivando um jardim com uma particular delicadeza". No ano passado, Djaimilia venceu o Oceanos com "Luanda, Lisboa, Paraíso" (Companhia das Letras). Em entrevista ao GLOBO, ela confidenciou ter escrito o livro ao som de Cartola.

— Todo o tempo que durou a escrita de "Luanda, Lisboa, Paraíso", ouvi continuamente "O mundo é um moinho", para mim uma peça filosófica, mais do que uma canção. Há no livro muito da desesperança, da alegria aos soluções, que encontro em canções de Cartola — disse a escritora, que nasceu em Angola e, em 2017, veio à Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip , lançar "Esse cabelo" (Leya) , que narra a tempestuosa relação de uma "rapariga" com seu cabelo crespo.

'Ausência onipresente'

O terceiro lugar ficou com um das figuras mais admiradas da literatura brasileira contemporânea: Maria Valéria Rezende, freira feminista que lutou nas fileiras da Teologia da Libertação e começou a publicar sua ficção, sempre preocupada com os pobres, já beirando os 60 anos. Maria Valéria venceu com "Carta à rainha louca", que concorrera ao Jabuti — romances anteriores da escritora conquistaram prêmios importantes, como o São Paulo, Casa de las Américas e o próprio Jabuti.

Maria Valéria Rezende: A escritora que traz o sertão de volta à literatura

O romance premiado consiste numa longa missiva, destinada a Maria I, rainha de Portugal, e redigida, entre 1798 e 1792, por Isabel das Santas Virgens, brasileira presa por abrir um convento nas Minas Gerais sem autorização da Coroa. Em entrevista ao GLOBO à época do lançamento, Maria Valéria contou que o livro é baseado em um processo que ela encontrou num arquivo português. O crítico literário João Cezar de Castro Rocha , também jurado do Oceanos, disse que, nunca respondida, a carta escrita por Isabel "revela a ausência onipresente que ainda hoje domina a história brasileira".

A escritora Maria Valéria Rezende, autora de "Carta à rainha louca" Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
A escritora Maria Valéria Rezende, autora de "Carta à rainha louca" Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

No vídeo enviado à organização do prêmio, Maria Valéria lembrou que esse livro "veio se construindo desde os anos 1970, quando, na falta de outras coisas para ler, eu me abastecia, no sertão da Paraíba, na biblioteca de um padre muito erudito, de coleções de sermões do Padre Antônio Vieira". "Naquilo que parecia obsoleto a quem vivia nas cidades", continuou freira-escritora, "eu percebia uma linguagem (vocabulário e mesmo a estrutura das frases) que escutava do povo com o qual convivia". "Carta à rainha louca" se esforça para emular a cadência do português setecentista.

Este ano, foram inscritos no Oceanos 2.012 livros publicados por 450 editoras de Angola, Brasil, Cabo Verde, Macau, Moçambique e Portugal. Vieira Junior, Djaimilia e Maria Valéria receberão, respectivamente, R$ 120 mil, R$ 80 mil e R$ 50 mil.