Cultura

Nova geração da canção gospel extrapola a pregação e conquista público fora do nicho religioso

Influenciados por Beyoncé, parceiros de Buchecha e MC Livinho, artistas como Priscilla Alcantara bombam em palcos e no streaming
A cantora Priscilla Alcantara, estrela do gospel Foto: Divulgação
A cantora Priscilla Alcantara, estrela do gospel Foto: Divulgação

RIO - Letras que rimam Jesus, cruz e luz, em hinos pop de louvor para convertidos, já não são a única realidade da música gospel no Brasil. Num país em que os evangélicos chegam a 30% de população (um universo de mais de 62 milhões de almas) o gospel se recicla e busca ampliar seu público. Um grupo que não para de crescer, como se viu no mês passado, quando a Marcha para Jesus levou 3 milhões de pessoas às ruas de São Paulo, entre elas o presidente Jair Bolsonaro.

Longe da fé e perto dos números, trata-se de um mercado que movimenta cerca de R$ 2 bilhões por ano segundo levantamento da Associação de Empresas e Profissionais Evangélicos (Abrepe). E que virou alvo de atenção extra por parte de gravadoras e plataformas de streaming. O Spotify, por exemplo, reconhece que “o consumo de música gospel no streaming tem crescido de maneira expressiva” e, por isso, “tem investido cada dia mais no gênero, tendo agora uma equipe totalmente dedicada ao gospel”.

Por lá, playlists como “Sucessos gospel” e “Mulheres do gospel” estão entre as mais populares do país. Na plataforma Deezer, o canal gospel se tornou o segundo mais ouvido em 2017, perdendo apenas para o sertanejo. As playlists de gospel são hoje as recordistas em engajamento dos ouvintes: enquanto as de sertanejo têm uma média de 40 a 50 minutos de audição, as de música cristã chegam a 1h10m.

Autor do livro “A indústria da música gospel”, o jornalista Adailton Moura explica que a massificação do YouTube e das plataformas de streaming foi o que mais impulsionou essa cena que se fortalecera com a venda de CDs no começo dos anos 2000. Tudo isso, apoiado num público que, por razões religiosas, pondera Adailton, rejeita o consumo de pirataria.

— Com a internet ficou mais fácil disseminar as músicas gospel. Os evangélicos demoraram a abraçar o digital, mas agora estão começando a enxergar um horizonte. Antes, ficaram muito na onda do CD, e a música acabou se fechando na igreja — diz.

Sem rejeição

Para Lincoln Baena, diretor de gospel da Deezer, a benção da revolução tecnológica foi dar a possibilidade a todos os públicos de entrar em contato com a música gospel:

— O mercado da música se abriu para a canção cristã. Com isso, muitos artistas estabelecidos do gospel conseguiram se reinventar. O legal é que não houve rejeição de nenhum dos públicos.

Vista aérea da Marcha para Jesus 2018, maior evento evangélico do país, em São Paulo Foto: Edson Lopes Jr./UOL/Folhapress)
Vista aérea da Marcha para Jesus 2018, maior evento evangélico do país, em São Paulo Foto: Edson Lopes Jr./UOL/Folhapress)

Pelo que se vê da experiência de Priscilla Alcantara , não houve mesmo. Filha de músicos líderes de louvor e ex-apresentadora infantil no SBT (do programa “Bom dia & cia”), a cantora é um fenômeno que extrapolou o nicho. Tem mais de 2,5 milhões de inscritos em seu canal do YouTube e um hit, “Me refez” (do álbum “Gente”, do ano passado). A música tornou-se a primeira canção gospel brasileira a entrar no Top 200 do Spotify Global — soma 10,5 milhões de reproduções.

Ligeiramente tatuada, Priscilla se apresentou este ano na Virada Cultural, em São Paulo (com a amiga Bruna Marquezine assistindo a tudo, no canto do palco). Também participou do programa de Fátima Bernardes, na TV Globo. E agora sonha em cantar no festival Lollapalooza.

Ela aposta em mensagens de acolhimento, com papo reto (sua palestra “Crente também é gente” tem 1,6 milhão de visualizações no YouTube). Resultado: vem atraindo jovens de diversas orientações religiosas.

— Consegui criar uma ponte de comunicação. É impressionante a dificuldade que a música cristã tem de ser influente. Às vezes é o preconceito que impede — diz a cantora, num intervalo de sua participação no evento Expo Evangélica, que aconteceu no começo do mês, em Fortaleza. —Minha estratégia é buscar o que todos temos em comum. Quem não quer paz e amor?

Departamento gospel

Além de aproveitar as possibilidades abertas pelo mundo digital e investir em letras para além da pregação, a nova canção gospel também mergulha numa maior variedade de estilos musicais. É o que observa Tatiana Cantinho, gerente da área artística e de repertório da Som Livre, primeira grande gravadora brasileira a criar um departamento gospel, em 2008 — antes, o mercado se restringia a selos evangélicos.

— A gravadora hoje tem seu foco nesse novo tipo de artista gospel, com uma sonoridade mais moderna e capacidade de passear com a música secular — diz Tatiana, citando uma aposta da Som Livre. — O Ton Carfi, por exemplo, traz uma influência grande da black music.

Paulista de São José dos Campos, Carfi tem parcerias com os funkeiros Buchecha e MC Livinho. Com um estilo próximo do r&b, ele tem mais de 200 milhões de visualizações no YouTube e mantém a média de 500 mil ouvintes mensais no Spotify.

Esses resultados em “milhões” têm sido uma constante para outros jovens nomes da música gospel, como Isadora Pompeo, Eli Soares, Estêvão Queiroga, Gabriela Rocha, Delino Marçal e o duo Preto no Branco. E estimulou inclusive a atuação de coletivos de compositores e produtores — tendência que vem de vertentes com sucessos estrondosos, como o sertanejo. É o caso da Casa Worship.

'As 50 virais do Brasil'

Formada no ano passado na Igreja Casa de Goiânia pelos pastores Davi e Giovanna Passamani, ela lançou em fevereiro a música “A casa é sua”, que rapidamente viralizou no YouTube (hoje tem mais de 32 milhões de views). A canção passou semanas liderando a playlist “As 50 virais do Brasil” do Spotify e foi a primeira do segmento cristão a romper a barreira do ranking das 50 mais ouvidas do Deezer.

Um detalhe ajuda a explicar o sucesso vertiginoso: além de Davi e Giovanna, que já tinham seus hits no gospel, a Casa Worship (que está sendo disputada pelas grandes gravadoras) conta ainda com Leo Brandão, um dos autores de “Atrasadinha”, hit de Felipe Araújo e Ferrugem que foi a música mais tocada do Brasil no fim de 2018.

— Foi uma surpresa até para nós mesmos — admite Felipe Rodrigues, um dos integrantes do time de músicos, produtores e compositores reunidos na Casa Worship. — Acho que tudo isso veio da união, cada um de nós já tinha uma carreira solo, e sentamos juntos para compor nove músicas para um DVD (ainda a ser lançado) . O nosso pastor tinha uma visão de levar a igreja para quem não é crente.

Não à toa, a Casa Worship vem sendo considerada a promessa do momento, ao lado de Priscilla Alcantara. Apesar de celebrada por seus resultados, a cantora paulistana vê para si uma missão que vai bem além da grandiosidade dos recordes.

— Não sou uma pessoa dos números. Tem pessoas que pensam isso por mim, e melhor do que eu. O que quero é influenciar pessoas. Quando consigo juntar essa influência aos números, melhor ainda — diz ela, que está preparando um novo álbum.

Beyoncé como influência

Ao falar de inspirações, Priscilla cita artistas pop que atingiram o mais amplo dos públicos, como Michael Jackson e Beyoncé.

— Quero ter essa dedicação que eles tiveram. Cresci em uma família musical, meu pai me dava CDs, não bonecas. Brincava era de ser cantora.

Diretor artístico de gospel da Sony Music — gravadora que apostou em Priscilla e hoje deve 20% do seu faturamento líquido ao segmento —, Maurício Soares é otimista em relação ao futuro do santo negócio no Brasil.

— É preciso que se entenda que o gospel tem uma riqueza cultural, que ele hoje é consumido por milhões e milhões de pessoas. E, claro, assim como os outros estilos, há os bons e os maus intérpretes.