Celebrado na História como o grupo que, no fim dos anos 1960, levou a escuridão das vielas nova-iorquinas para o rock, inspirando incontáveis artistas e até mesmo alguns gêneros inteiros, como o pós-punk e o gótico, o Velvet Underground sempre foi associado ao gênio do americano Lou Reed (1942-2013). Mas, no período inicial, havia o galês John Cale, um sujeito vindo do mundo da música de concerto avant-garde que, com sua viola elétrica e suas ideias fora de esquadro, levou o VU para além dos padrões roqueiros.
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“John era o elemento subversivo da banda, um dos músicos mais subestimados da história do rock. Esse cara é um perigo, um verdadeiro personagem. Não consigo pensar em ninguém mais assustador e sombrio. Lou Reed é um coroinha comparado a ele”, disse em 1993 um grande amigo de Cale, e alguém que entendia bastante de rock e de subversão: David Bowie (1947-2016). Alguém que exultaria em ver o galês, aos 82 anos de idade, ainda em atividade nos palcos e produzindo discos, como “POPtical illusion”, lançado na última sexta-feira (14).
Coleção de canções experimentais guiadas por batidas eletrônicas, sintetizadores e guitarras, e costuradas pela inconfundível voz grave de John Cale, o álbum vem logo em seguida a “Mercy” (2023), disco que ele gestou no período de quarentena da Covid-19.
Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o músico conta que as últimas horas antes de a pandemia fechar o mundo ele passou em São Paulo, onde era atração do Nublu Festival.
— Não foi nada engraçado — lembra ele. — Saímos de São Paulo em um momento realmente estranho, porque não se sabia se, quando chegássemos aos Estados Unidos, tudo estaria fechado. Foi arriscado, complicado. O aeroporto estava cheio de pessoas perdidas, que não sabiam exatamente para onde ir ou como se virar. Foi uma boa lição.
De volta a Los Angeles, onde mora, Cale começou a produzir freneticamente.
— Uma vez que comecei a trabalhar no estúdio, as músicas foram se sucedendo, as emoções foram despertando outras emoções e eu simplesmente não queria mais parar — conta ele, que primeiro lançou “Mercy”, um disco de espírito colaborativo em que trabalhou com artistas do pop experimental atual como Laurel Halo, Weyes Blood e Animal Collective. — Como havia muita energia naquele primeiro disco, acabei produzindo mais músicas do que precisava. E fiquei muito feliz em continuar produzindo, porque havia uma grande variedade de assuntos, sentimentos e emoções acerca daqueles tempos. Trabalhei muito em “Mercy”, mas o segundo saiu igualmente enérgico.
![Capa do álbum "POPtical Illusion", do cantor e compositor galês John Cale — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/rNempwuwCCGkmmkDtt34-Q6BMno=/0x0:1462x1458/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/T/o/SK2HSyRzAXJ6kqHkkR4g/107358785-sc-capa-do-album-poptical-illusion-do-cantor-e-compositor-gales-john-cale.jpg)
Em “POPtical illusion”, entraram faixas como “Shark-shark” (“a mais energética de todas e também a mais divertida de se tocar”, na qual ele acrescentou a sua guitarra de tons punks) e a alegre “Davies and Wales”, mas também a melancólica “Setting fire”, que fala das árvores em chamas cada vez mais comuns nos tempos de aquecimento global.
— É triste, mas fico feliz que alguém esteja prestando atenção nisso — diz John Cale, que ainda deixou as emoções aflorarem em “I’m angry” (“Estou com raiva”). — Bem, muitas coisas diferentes me deixam com raiva, mas acho que essa música trata mais da melancolia do que de qualquer outra coisa. Ela fala sobre como as amizades evoluem.
Filho de um mineiro e de uma professora primária que encontrou na música clássica o seu passaporte para o mundo, John Cale conseguiu primeiro uma bolsa para estudar em Londres. Mas logo seus dotes artísticos o levariam, em 1963, ao centro artístico do mundo.
— Foi um processo que começou com o avant-garde, fui a Nova York para estudar na faculdade com Aaron Copeland, fiz alguns trabalhos com John Cage, e então todo o sistema em si ficou mais claro para mim — conta Cale. — Quando cheguei à cidade eu era um jovem galês que nunca tinha experimentado o rock’n’roll, foi algo que descobri de repente, tipo “ei, peraí, o que fazemos com todas essas outras músicas, esses outros estilos de música que nós gostamos?” Amei esse período da minha vida.
Em 1964, ele conheceu Lou Reed, que trabalhava como compositor em um selo de música jovem e, atraído pela estranheza de suas músicas, formou com ele no ano seguinte o Velvet Underground. O grupo chamou a atenção de outra alma desguiada, o artista plástico e figura central da pop art Andy Warhol, e debutou sob suas asas em 1967 com o álbum “The Velvet Undergound & Nico”, um reconhecido clássico do rock. No ano seguinte, o VU lançaria outro clássico, “White light/white heat”, após o qual Reed, irritado pelas incessantes disputas artísticas com Cale, forçaria o restante da banda a concordar com a sua demissão.
![O grupo Velvet Underground (John Cale é o primeiro à direita), com a cantora Nico e o artista plástico Andy Warhol (de cabelo louro), em 1966 — Foto: Divulgação/Gerald Malanga](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/q8A1OcLZdK18zvI9gReqyKumKss=/0x0:1857x1435/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/Z/R/FD9yTIRXqD3mtYBEJXsw/58914585-sc-le-velvet-underground-et-nico-avec-andy-warhol-hollywood-hills-1966-c-gerard-malanga-cour.jpg)
A partir daí, o galês seguiu a sua vida como produtor fonográfico (de discos seminais como “The Stooges”, estreia da banda do cantor Iggy Pop, e “Horses”, de Patti Smith) e artista solo (com álbuns desafiadores e influentes, como “Paris 1919”, de 1973). Sua relação com Lou Reed continuou a ser de amor-ódio, retomada em 1989 no álbum “Songs for Drella” (em homenagem a Andy Warhol, logo após sua morte) e nas reuniões em 1993 e 1996 do Velvet Undergound, banda cujo segredo até hoje John Cale tenta desvendar:
— Bem, nós estávamos muito desconfortáveis com nós mesmos e não sabíamos exatamente o que fazer. Estávamos muito animados com todas as pessoas que conhecemos em Nova York, não sabíamos realmente em que direção ir. Mas acabou que, por causa da influência do avant-garde, tivemos a nossa atenção desviada para o futuro.
Entre os muitos álbuns solo de John Cale, está um que hoje soa visionário: “Artificial intelligence”, de 1985.
— Chamei o álbum de “Inteligência artificial” por sugestão de um amigo meu, o (diretor) Jonathan Demme (1944-2017), para quem eu estava fazendo a trilha sonora do filme “Totalmente selvagem”. Era algo com o qual estávamos apenas nos divertindo, mas acho que foi um movimento importante a ser feito — acredita ele, cauteloso quanto aos usos atuais recursos tecnológicos, com os quais se poderia ate mesmo fazer um disco de John Cale sem John Cale. — Eu teria muito cuidado, não gostaria de ser responsável por pegadinhas.
Interesse pelo hip hop
Em seus discos mais recentes, Cale diz que o trabalho geralmente começa com batidas ou com palavras (“umas ajudam a outras”, ensina).
— É sempre divertido sentar no estúdio e tentar levar adiante uma nova ideia musical. Não gosto de me repetir — diz ele, apreciador dos produtores surgidos nos últimos anos no hip-hop. — Comecei a prestar atenção em J Dilla e depois em Vince Staples, Earl Sweatshirt e Tyler, The Creator. Todos eles tinham umas atmosferas interessantes, que impulsionam sua música.
Para John Cale, subir ao palco é a razão de ainda continuar a fazer música, mesmo aos 82 anos.
— Sem o público na sua frente, você sabe, não exista vida! — justifica-se o músico, que desde o fim dos anos 1980, quando abandonou as drogas e descobriu o squash, busca um estilo de vida mais saudável. — Vou à academia todos os dias, depois tento encontrar um bom lugar para comer à tarde e aí volto e encontro meus músicos e decidimos o que fazer. Agora que vamos sair em turnê, estamos preparando muitas músicas novas, porque o show será grande.
Num mundo que hoje não tem mais David Bowie e nem Lou Reed, Cale diz se sentir um privilegiado por ter vivido tudo o que viveu:
— Os dois fazem parte de períodos da minha vida que nunca vou esquecer. Fico muito feliz por ter tido a experiência que tive com eles, tenho muito orgulho disso.