Cultura
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Por , Especial para O GLOBO

Hoje em dia, só quem acredita que a Terra é chata, põe em questão o status de Chico Buarque como um dos artistas mais importantes e influentes do Brasil de todos os tempos. Imediatamente pensamos no Chico compositor e cantor que, através de dezenas de canções, construiu uma espécie de inconsciente coletivo dos desejos, e também das frustrações, da esquerda brasileira. Apesar da produção literária do artista ter vida própria, ela também ajuda na compreensão dessa dimensão histórica profunda da vida no país, do golpe de 1964 até hoje, que atravessa sucessos como "Apesar de você", "Construção", "Cotidiano", "João e Maria" e "O que será (a flor da terra)", para ficarmos nas mais tocadas no Spotify.

Nesse aspecto, o livro decisivo é "Estorvo" (1991). Narrado em primeira pessoa, o romance de estreia de Chico tem na cena inicial a chave que organiza o andamento da história: um desconhecido bate à porta de uma quitinete e é observado através do olho mágico. A imagem distorcida pela lente fornece o tom paranoico ao desnorteamento do narrador que, sempre fugindo, sem saber exatamente de quem, não é capaz de compreender a realidade ao seu redor. O que poderia ser mero delírio do protagonista, é na verdade a intuição forte do romance para um país que ressurgia irreconhecível após 21 anos de ditadura.

A realidade degradada e violenta construída conforme o narrador revê os locais que lhe eram familiares não parecia fazer sentido num momento histórico de grandes esperanças. Afinal, novamente votávamos para presidente, tínhamos uma Constituição da qual nos orgulharmos e a globalização acenava no horizonte com a promessa de uma nova rodada de modernização, o que significava alcançar o tão sonhado padrão de vida dos países ricos do Norte Global.

A história, como sabemos, se desenrolou muito mais a partir do que estava cifrado na forma literária radical de Estorvo, do que no passo a passo da cartilha do Consenso de Washington. Caminhamos em direção a uma sociedade organizada de cima a baixo por associações criminosas, violenta e anestesiada pelo espetáculo midiático e da mercadoria.

Ao desviar a atenção das utopias democratizantes para a negatividade do processo social periférico, o romance convida a um novo olhar para diversas canções. A rodada anterior de modernização, em plena ditadura, com urbanização e industrialização aceleradas, tem seu quinhão de horror na repetição infernal da vida em "Cotidiano" e na brutalização do trabalhador em "Construção". O balanço suave de "Bancarrota blues" esconde o prazer ilícito reservado a uma elite racista e mesquinha, mas também falida. Entre as canções pós-"Estorvo", há a sugestão de prostituição infantil na divertida "Carioca" e o salve-se quem puder da lei do mais forte em "Ode aos ratos" (em parceria com Edu Lobo).

Retratos da elite

Se tivesse parado em "Estorvo", Chico já mereceria figurar entre os autores mais interessantes da cena literária brasileira. Não parou. Em "Leite derramado" (2009), um narrador pouco confiável, meio canalha meio senil, expõe os esquemas e preconceitos de uma elite que vê a si própria como europeia, sem no entanto ser capaz de abafar completamente as vantagens herdadas da ordem escravocrata. Surge um Dom Casmurro mais egoísta e violento, a espelhar a feição social do país na degradação de sua família.

Em tom irônico, o romance "Essa gente" (2019), publicado em pleno governo Bolsonaro, novamente ataca a elite brasileira, que a essa altura já abrira mão do verniz cultural europeizado: é escancaradamente egoísta, violenta e cafona. Mas o que interessa é o beco sem saída para a própria geração do artista que, encurralda pela "gente ordeira e virtuosa", que optara nas urnas pelo fascimo, se vê diante de duas escolhas: exílio ou suicídio.

Não é nada comum que um compositor e cantor da qualidade de Chico Buarque também alcance momentos de grande envergadura em romances. Se as duas dimensões da obra do artista podem ser avaliadas separadamente com proveito, ao lermos uma através da outra, é possível compreender melhor o ritmo específico da experiência nesta parte do mundo chamada Brasil. Aos oitenta anos, o olhar de Chico para a sociedade brasileira segue encantando, mas também desafiando seus fãs com questões tão duras quanto decisivas.

Tiago Ferro é crítico literário e autor dos romances "O pai da menina morta" (prêmio Jabuti, 2019) e "O seu terrível abraço" (2023), ambos publicados pela Todavia.

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