Cultura
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Por — Rio de Janeiro

A cena teatral temeu a figura de Barbara Heliodora ( 1923-2015 )por décadas. Ao saber que a mais rígida crítica do país estava entre os espectadores, até o mais experiente dos atores se sentia exposto. Alguns preferiam não ser avisados de sua presença, mesmo correndo o risco de depois se surpreender por seus cabelos prateados despontando na plateia (ela media quase 1,80m), em geral em uma poltrona nas primeiras filas.

— Só de vê-la na plateia a mão gelava e o coração disparava — recorda a atriz Arlete Salles. — Era a mais temida das críticas, porque era rigorosa, mas também porque tinha muita propriedade no que dizia. Receber um elogio dela era como um prêmio. E receber uma crítica... Bem, nem preciso falar.

A figura da tradutora, crítica, historiadora teatral, jornalista, professora e gestora no serviço público marcou sucessivas gerações e ainda é sentida no seu centenário de nascimento, comemorado hoje. No imaginário coletivo, ela se firmou a ponto de inspirar uma peça — a comédia “Barbara não lhe adora”, encenada em 2000. Publicadas no GLOBO de 1990 até 2013 (ano em que se aposentou), suas críticas podiam catapultar as carreiras de profissionais. Ou abreviá-las. A teatróloga, por sua vez, preferia manter distância. Garantia que não ligava para o que diziam dela.

— Quando falo mal, sou uma diaba; quando falo bem, sou uma santa — comentou ao GLOBO em 2007. — Mas o que me interessa é o trabalho, não a pessoa.

Amiga de Fernandona

Para Fernanda Montenegro, que foi sua amiga, Barbara “amava o teatro passionalmente e sabia o quanto é duro levar este andor pelos palcos deste nosso país”.

— Barbara nunca foi uma moça bem comportada. Era uma crítica que tinha régua e compasso — diz a atriz. — Foi temida? Sim. Foi amada? Sim. Barbara foi e é um de nós: “Filhos da Arte.” Essa matriarca do teatro foi e é parte da “matéria dos sonhos” de que fala o Bardo. O teatro foi a sua vida.

O mundo do teatro temia o seu rigor, mas também o respeitava — como comprova o livro “Barbara Heliodora, o resumo e a crônica do teatro”, organizado por Liana Leão e Walter Lima Torres Neto, que será lançado em 2024 pela editora do Solar do Rosário, uma instituição cultural de Curitiba. A obra reúne cem textos de diversos artistas sobre seu legado, incluindo nomes que por ela já foram criticados — mas também elogiados — como Beth Goulart e Miguel Falabella.

Professora da Universidade Federal do Paraná e, assim como a homenageada, especialista em Shakespeare, Liana Leão lembra que a regularidade de Barbara no debate público fez dela a “voz feminina mais importante” no cenário teatral brasileiro em seu tempo. Foram 60 anos indo em média três vezes por semana ao teatro, totalizando mais de 1.300 espetáculos vistos

Era comum que a classe artística retaliasse quando se sentia injustiçada. Barbara teve querelas públicas famosas com Gerald Thomas e José Celso Martinez Corrêa e chegou a ser barrada em um espetáculo de Ulysses Cruz, em 1996.

O elenco de "Barabara não lhe adora" — Foto: Divulgação
O elenco de "Barabara não lhe adora" — Foto: Divulgação

Outros preferiram usar o próprio teatro como resposta. Em 1997, após ter um espetáculo seu detonado por Barbara, o dramaturgo Henrique Tavares testemunhou uma cena insólita. O protagonista da peça, que havia sido particularmente criticado, chorou em frente ao espelho. Percebendo então a fragilidade do ego da cena artística, Tavares teve a ideia de fazer uma peça que satirizasse a conturbada relação entre profissionais do teatro e imprensa.

Assim surgiu a tal comédia encenada em 2000, “Barbara não lhe adora”, sobre um grupo teatral que sequestra a Grande Dama da Crítica após uma resenha negativa. A peça cômica de Tavares foi um sucesso de público e recebeu críticas positivas, inclusive de Barbara. De acordo com o autor, a crítica se divertiu muito com a peça, que acabou de ter seus direitos negociados com o cinema.

— A gente não fez um ataque pessoal, não era uma vingança — explica Tavares. —A ideia era brincar com algo universal: a egolatria do mundo artístico. Só que ao mesmo tempo não podíamos abrir mão do personagem maravilhoso que ela era. Barbara era o epicentro do teatro na época.

Tavares diz que, em certo nicho da cena teatral, entusiastas da vanguarda acabavam se interessando pelas peças que ela atacava. Acredita-se, por exemplo, que ela não gostava de alterações de autores clássicos. Tradutora de quase todas as peças de Shakespeare, ela deu uma entrevista em 2014 criticando as montagens brasileiras. “Os diretores não querem fazer Shakespeare, mas uma outra coisa”, disse ao jornal Zero Hora.

— Era uma figura tão presente que servia de parâmetro até para quem não gostava dela — diz Tavares. — Às vezes, odiava tanto uma peça que gerava curiosidade no público para ir lá conferir.

O produtor Eduardo Barata fazia de tudo para evitar que Barbara comparecesse nas estreias de seus espetáculos, quando a chance de sair algo errado sempre aumentava. Mas a crítica argumentava: se estava aberto para o público, estava aberto para ela.

— Eu tinha minhas táticas, como mudar a estreia para Niterói (para dificultar a ida dela), ou então fazia ensaios abertos com preços menores — conta Barata. — Tive peças de sucesso cuja bilheteria despencou depois de uma crítica negativa. E não adiantava mudar para outro estado porque a opinião dela repercutia no restante do Brasil. Quando um texto estava para sair, os atores enlouqueciam e só dormiam à base de Rivotril, Frontal, Lexotan...

Heloísa Périssé viveu duas situações extremas. Em 2001, colheu elogios de Barbara ao estrear “Cócegas”, com Ingrid Guimarães. O texto, que foi capa do Segundo Caderno, chegou a ser emoldurado pela família. Em 2013, porém, teve que lidar com comentários um pouco mais duros no seu primeiro monólogo, “E foram, quase, felizes para sempre”.

— Liguei para saber quando falou mal do meu trabalho, e conversamos sobre isso — conta a atriz. — Uma crítica bem feita pode nos ajudar a melhorar, sendo construtiva.

Ainda hoje, a imagem de Barbara Heliodora para alguns pode ser a de uma senhora carrancuda, formal e tão séria como os textos que publicava na imprensa. Quem conviveu com a crítica, porém, conheceu uma pessoa muito diferente.

— Era uma imagem completamente errada — diz a atriz Patrícia Bueno, uma das três filhas de Barbara. — Criaram uma entidade, um monstro sagrado, que não tinha nada a ver com ela. Muita gente só lembra das críticas e de quem ela falou mal e de quem falou bem. Mamãe era festeira, adorava comemorar aniversário e receber pessoas em sua casa no Beco do Boticário (Cosme Velho, Zona Sul do Rio). Hoje, ela estaria em festa.

Também pouco conhecida é a paixão de Barbara pelo Fluminense Football Clube. Seu pai, Marcos Carneiro de Mendonça, foi goleiro do primeiro time do clube e da Seleção Brasileira. Já a inclinação por Shakespeare e pelos versos veio da mãe, a poeta Anna Amélia de Queiroz. Foi ela quem lhe presentou com o primeiro livro do bardo inglês, aos 12 anos.

Barbara Heliodora (direita) em sua formatura na universidade — Foto: Acervo familiar
Barbara Heliodora (direita) em sua formatura na universidade — Foto: Acervo familiar

Barbara consolidou seu interesse por Shakespeare no Connecticut College for Women (hoje Connecticut College), em New London, nos EUA, onde se graduou em 1943. Lá foi orientada pela professora Dorothy Bethurum Loomis, uma shakespeariana rigorosa que tornava o estudo “excitante e desafiador”, conforme lembrou mais tarde.

Em 1958, iniciou sua carreira na Tribuna da Imprensa. No ano seguinte, já exercia forte influência na cena teatral com a sua coluna no Jornal do Brasil. Em 1964, durante a ditadura militar, afastou-se do jornalismo para assumir a direção do Serviço Nacional de Teatro (SNT), cargo que exerceu até 1967.

Décadas mais tarde, a sua atuação no órgão federal gerou uma batalha judicial com o ator José Wilker. Em 2005, em entrevista para a Isto É, o ator afirmou que Barbara teria proibido a sua montagem da peça “Morte e vida severina” durante a ditadura militar.

A crítica foi à Justiça contra o ator e ganhou um processo por danos morais. “A Barbara de fato foi diretora do Serviço Nacional de Teatro de 1964 a 1967, mas o órgão era totalmente contra a censura”, disse ao GLOBO na época a advogada Julia Cola Schmid. Foi um raro momento em que Barbara respondeu a alguma provocação da classe artística.

— Ela não dava a menor bola para quem ficava de ódio — lembra Patrícia Bueno. — Dizia que não queria perder tempo e saúde com isso.

Além de atuar como professora, crítica e tradutora, Barbara assinou montagens como “Comédia de todo mundo”, “A Rússia de Tchekov” e “Um homem chamado Shakespeare”. Como atriz, assumiu o papel da Rainha Gertrudes, em “Hamlet”, em uma montagem de 1958, mas foi substituída por ninguém menos do que Cacilfa Becker após descobrir que estava grávida da filha Patrícia. “O ator tem que ter um grande prazer em pisar no palco. E eu não tenho”, dizia ela.

Muitos profissionais das artes cênicas sentiam que Barbara mantinha o máximo de distância possível para não misturar o pessoal e o profissional — e respeitavam essa postura. Ela, contudo, manteve-se próxima de algumas personalidades de sua geração, como Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi, Jaqueline Laurence e Tônia Carrero, entre outros.

— Quando esse pessoal todo se reunia, sai de baixo — recorda Bueno. — Eu tinha acesso de risos vendo todos juntos, era muito engraçado.

Bom humor no tombo

Liana Leão guarda uma história que revela o senso de humor da amiga. Quando tinha 75 anos, Barbara rolou das escadas do Centro Cultural Banco do Brasil depois de assistir à peça “Essa noite se improvisa”, de Luigi Pirandello. Não aceitou ajuda para se levantar e, no dia seguinte, apelidou o galo na cabeça de “Pirandello”.

Cena do filme "Barbara em cena", de Ellen Ferré — Foto: Divulgação
Cena do filme "Barbara em cena", de Ellen Ferré — Foto: Divulgação

Em 2011, a produtora Ellen Ferré, então estudante de cinema, teve a ideia de fazer um documentário sobre a famosa crítica do GLOBO, com depoimentos dela e de amigos. Na primeira conversa ao telefone, o que lhe chamou a sua atenção foi a voz.

— Imposta, polida, shakespeariana... Uma lady inglesa falando em português — conta Ferré, que ao longo das filmagens se surpreendeu com uma personagem um tanto defensiva. — Ela era muito reservada. Não é que tivesse medo da câmera, mas é como se tivesse um desconforto em ser protagonista. Talvez por causa do seu ofício ela detestasse chamar a atenção.

Lançado em DVD, o documentário também ficará disponível no YouTube a partir de hoje, no canal @barbaraemcena. No dia 16 de setembro, Ferré estreia um podcast, “100 Barbara”, sobre a trajetória da crítica.

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