Cultura
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Por Maria Fortuna — Rio de Janeiro

Quando ouvia o barulho da máquina de radioterapia armar e mirar seu rosto, Heloísa Périssé agia como se evocasse os poderes de Grayskull: “Raio da beleza”, pedia, “raio da saúde”, “do sucesso”, “do dinheiro”, enfileirando um desejo a cada fração de segundo que antecedia a rajada de radiação. A atitude vinha após agradecer por ser ela naquela cama de hospital, e não uma de suas filhas, sua mãe ou seu marido. A fé de que dispunha, acreditava a atriz, humorista e autora de 56 anos, lhe dava mais ferramentas para lidar com aquele acontecimento do que qualquer um da família.

Foi com este espírito que Lolô, como é chamada, encarou as 33 sessões (e outras cinco de quimioterapia, além de nove horas de cirurgia) que a curaram do câncer raro nas glândulas salivares. Muitas vezes, o bom humor não foi páreo para a deprê. E ela oscilava entre indignação e revolta. No dia em que sequer conseguiu tirar o pijama para ir ao hospital, teve uma conversa com Deus: “Senhor, por que estou passando por isso?”, questionou a atriz, que não mais se autodenomina evangélica, mas “cristã”. Ali, ela jura, sentiu uma mão segurar a sua. E entendeu que precisava aceitar e se entregar à situação para colher os aprendizados a partir dela.

Heloísa Périssé: "'Decidi uma coisa: 'Eu não envelheço, eu atualizo"' — Foto: Divulgação/Andre Wanderley
Heloísa Périssé: "'Decidi uma coisa: 'Eu não envelheço, eu atualizo"' — Foto: Divulgação/Andre Wanderley

Terminou o tratamento “em frangalhos”, como se tivesse sido “atropelada por uma jamanta”. Mas, como nivelar a vida em alto-astral é seu maior dom, Lolô converteu o processo em inspiração. Transformou, em sua definição, “merda em adubo”. O adubo, no caso, é uma peça. Com linguagem de palestra motivacional, “A iluminada”, escrita com colaboração de Alex Lerner, mistura humor e superação como remédio para combater a dor. Estreia nesta sexta (14), no Teatro XP, no Jockey Club do Rio de Janeiro.

‘Curomancia’

No palco, a atriz é dirigida pelo marido, Mauro Farias, e encarna Tia Doro, que cresceu com uma mãe paranormal não convencional. Sua progenitora inventou nada menos do que a “curomancia”: em vez de tarô ou coisa do gênero, ela lê... o ânus das pessoas. E a filha sofre bullying por isso. Mas, ao compreender a condição de sua família, vê sua vida mudar.

Já a vida de Lolô começou a mudar em 2019, quando ela teve uma premonição. Ao olhar pela janela de sua casa que emoldura o Morro Dois Irmãos, sentiu o que chama de “sensação de morte”. E pensou: “Deu.”

— Descobri que sou assim: estou aqui e ouço essa árvore falando (aponta para o jardim de sua casa). E oro a Deus para que eu consiga romper os cinco sentidos, que expanda minha consciência e me revele coisas grandes e ocultas — diz ela, que hoje não mais se autodenomina evangélica, mas "cristã".

O diagnóstico veio em seguida, quando passou a viver uma “pandemia particular”. Estava com data marcada para apresentar, em Portugal, a peça “E foram quase felizes para sempre”, sobre seu “relacionamento chiclete” com o marido (“aquele que separa e volta o tempo todo e a gente perde até a moral com os amigos”). O câncer adiou os planos.

Corta para 2020. A atriz começava a colocar a cabeça para fora, veio o coronavírus. E ela decidiu que não poderia voltar aos palcos como antes, muito menos contar a mesma história. Precisava emburacar na reflexão sobre tudo o que havia vivido e falar sobre isso. Percorreu o caminho que gerou a tal metáfora do ânus.

— Foi o momento de ir no cu para sofrer a transformação. Porque é ele quem rege o medo, né? Deu ruim, você fecha aquilo e não passa nem wi-fi (risos). Soltei o freio de mão e fui no fundo do poço. Como a poesia de Khalil Gibran que diz que, quando o rio está chegando no mar, ele tem medo. Só que isso é inexorável. Uma hora, ele relaxa e vai. E, ao se fundir, descobre que só ganhará porque era o oceano também — filosofa. — Quando a gente perde o medo de perder, é que a vida acontece. Porque o medo é um um parasita. Por isso, deixo filho se foder um pouco. Fico na retaguarda, mas deixo. Crio minhas filhas para poder morrer tranquila. Controle é ego, é ilusão, é o que traz o sofrimento. Quando você vai contra, cria força oposta, mas ao se harmonizar, a coisa vai para o lugar que ela tem que ir.

Foi um momento de “grande preciosidade energética”, diz Lolô.

— Descobri que, lá no fundo, a gente encontra a cama elástica que precisa para voltar melhor. Nosso tabu com a morte é que a gente não vivencia nossos ritos. Morremos quando deixamos de ser criança, quando nos tornamos adultos... De morte em morte, chegamos à vida. "A iluminada" é um convite: vá visitar suas sombras — diz. — Fui obrigada a trabalhar meu espírito. Assim como a gente pega um peso e faz o tríceps. Dá para exercitar a alma freando um mau pensamento, pedindo a Deus que amplie o seu olhar.

Mas a doença deixou marcas irreversíveis e dolorosas, especialmente para uma atriz. Lolô perdeu movimentos da boca. Ficou com o sorriso torto. Pegou a manha de consertá-lo compensando metade do lábio inferior logo que sorri.

— Isso é o espinho na carne. Coisas que ficam para você olhar e dizer: “Passei.” Mas se você me pergunta se isso me leva a parar, respondo que me leva. Porque me limita. Eu tinha um sorriso muito aberto e bonito. Eu tenho saudades dele. Agora, tenho desejo de começar a me despedir da frente das câmeras, do palco e fazer o movimento de escrever as minhas histórias, dirigir, quem sabe?

'Desejo a todo mundo uma vida sexual plena

No início de carreira, Heloísa Périssé interpretava numa boa até aquele vulto que “passa lá atrás no blecaute, de costas”.

— Não importava o papel, sempre acreditei que era a protagonista. Escrevi o script da minha vida, não deixei para o ego — brinca. — Realizar bem o seu trabalho é que traz protagonismo.

A certeza da vocação a fez não só mandar às favas o namorado que a colocou contra a parede (“o teatro ou eu?”, disse ele), como também se tornar uma das atrizes mais populares do país por seus papéis cômicos.

E ainda marcar época ao escrever, com Ingrid Guimarães, o espetáculo “Cócegas”, quando poucas mulheres ocupavam o lugar de autoras na comédia. O movimento não só abriu portas para que novos nomes femininos surgissem na cena, como ajudou a transformar olhares sobre elas e impactou também o lugar que a mulher ocupava dentro da comédia.

— Se lembrarmos tempos antigos, nenhuma homem diria feliz "pô, saí com uma engraçada ontem". O cara queria sair com uma peituda. A mulher que vai olhar uma situação, falar uma sacanagem ou expor o outro causa medo. Nós, comediantes, já nascemos numa contramão da vida, remando contra a maré — analisa. — E antes, a mulher entrava na comédia como? A feia, que até tinha o direito de ser engraçada, a gostosa ou a burra.

Hoje, os palcos apresentam uma vasta gama de narrativas da mulher que é livre para falar.

— Dani Calabresa já disse que, se o mundo fosse justo, homem gozava Nutella. Uma mulher falar isso... Homem xingando todo mundo acha ok. Esse estigma de coroa de princesa desequilibra a gente. Mas a comediante pega essa coroa e joga longe — diz Lolô.

Ela vê com bons olhos outras transformações na cena.

— Tem coisas inconcebíveis hoje. Como a piada que diz que pobre sobe na vida quando o barraco explode. Não dá para ficar rindo das mesmas coisas até virar o tiozão do churrasco. Acho também que humor é como sexo: Tem que ser bom para os dois. Se faço uma piada com você e todos nós rimos, inclusive você, essa piada valeu. Agora se todo mundo riu menos você, fica esquisito.

A graça continua tendo lugar na vida da humorista. Em breve, será rodado o filme “Velhotes e curiosos”, inspirado na peça “Loloucas”, de Lolô, que agora assina o roteiro do longa com Alex Lerner e Monique Gardenberg.

No próximo dia 27, ela pode ser vista na terceira temporada de “Cine Holliúdy”, além de estar no ar participando da “Dança dos famosos”. Mas a artista também vai se aventurar por um terreno completamente novo. Ela está escrevendo seu primeiro filme dramático.

“Ágape” conta a história de Maria Rita, uma mulher fruto de uma família humilde, unida, mas também dividida por opiniões divergentes. Parte dela acredita que "bandido bom é bandido morto"; a outra, tem consciência de que a violência é fruto da desigualdade social. Nesse contexto, a protagonista vai trabalhar com menores infratores e tem sua vida diretamente impactada pela experiência.

No amor, Lolô curte momento de calmaria ao lado do marido com quem viveu aquele casamento ioiô e, ao todo, mantém uma relação de 20 anos.

— Se me perguntam se sou heterossexual ou homossexual, respondo: “Sou maurossexual.” Focada nele. Agora, então, que voltei a fazer minha reposição hormonal... Acho que os Farias são bons na coisa, porque eu estou bem, Andréa Beltrão (casada com Maurício Farias) está bem, Paula Toller (com Lui Farias) é um fenômeno a ser estudado.

Além da libido em alta (“desejo a todos uma vida sexual plena”), Lolô atribui a vivacidade ao seu “ser interior, que não tem idade”. E critica o etarismo.

— Essa história de que mulher não pode ter cabelo comprido ou sei lá o que depois dos 50 é pura babaquice... A mulher de 50 hoje é a de 30 em energia. Decidi uma coisa: “Eu não envelheço, eu atualizo.”

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