Cultura
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Por Maria Fortuna — Rio de Janeiro

Melancolia. Talvez seja este o ingrediente secreto responsável por regar de drama o humor de Otavio Müller. Mestre numa interpretação que funde os dois estilos sem que se consiga decifrar onde começa um e termina o outro, o ator de 57 anos conta que a vida toda carregou certa dose de tristeza. Deu até nome para essa sua, digamos, faceta: “João Gilberto”. Acredita que a característica venha das angústias inerentes à própria existência e também das dores do mundo. Diz que se afeta, principalmente, com a desigualdade social do Brasil. Mas a verdade é que um “traçozinho de depressão” sempre o rondou. Já detonou até crise de pânico. Ele recorreu a terapia, remédio... Mas a sombra permanece ali.

Se não pode vencê-la, o ator se serve dela na profissão. Não é um processo consciente, mas o fato é que o seu jogo cênico particular está sempre impregnado de um “q” de desalento. Virou assinatura, que se mistura ao respeito que Otavio tem pelo próprio estado de espírito. Ele acha que, assim como as pessoas, os personagens são resultado desse quebra-cabeça de sensações diárias, porque “ninguém é uma coisa chapada, cartesiana”.

'Não é mole fazer humor com todas essas questões importantes se impondo. A gente tem que ficar calado e segurar essa peteca', diz Otavio Muller  — Foto: Ana Branco
'Não é mole fazer humor com todas essas questões importantes se impondo. A gente tem que ficar calado e segurar essa peteca', diz Otavio Muller — Foto: Ana Branco

Existência precárias

O mais novo personagem em que podemos identificar o jamegão de Otávio é o protagonista de “O clube dos anjos”, filme baseado em obra homônima de Luis Fernando Verissimo, dirigido por Angelo Defanti, e que será exibido dia 10, no Festival do Rio. Ele interpreta Daniel, cara maltrapilho e amuado, que só come e bebe, vive de pijama e de cabelos engordurados. Organiza jantares com um grupo de amigos. Todos homens. A gastronomia é metáfora para falar, com ironia, do macho contemporâneo e sobre o retrato da masculinidade no cinema, que não pode permanecer o mesmo de anos atrás. O que se vê na tela são existências precárias.

— O filme trata de um assunto que acho bom: homem branco merda. É um compilado de babacas, que não se preocupam com o outro, são machistas, egoístas, autocentrados. Nenhum teve que batalhar nada. A gente vê ali nossos políticos e as pessoas que estão pouco se lixando para a quantidade de gente passando fome — analisa Otavio. — O espectador pode até pensar Esses homens estão falando bem deles?”. Na minha opinião, a gente está se arrasando, porque não tem como olhar aquilo e não se autocriticar.

Pessoalmente, ele anda correndo atrás rumo a desconstrução de padrões que o moldaram como homem branco de meia-idade, hétero, cisgênero. Aprende com as filhas (Maria, de 15, Clara, de 14) os códigos do mundo contemporâneo. Elas ensinam ao pai que uma menina pode, sim, adotar um nome masculino e continuar se vestindo com roupas femininas. Por causa delas e de sua participação no “Caldeirão com Mion”, como jurado do quadro Caldeirola, entrou no Instagram. Na verdade, foi quase obrigado pela sobrinha emprestada Flor Gil (o ator foi casado e tem um filho com Preta Gil, Francisco).

— A Flor disse: “Chega Otavio, tem que fazer um perfil!”. Mando coisas e ela posta, porque não sei nada — confessa o ator que, no programa, arranca risadas por não ter ideia de quem são as celebridades das redes sociais. — Faço cara de assustado porque fico confuso mesmo. Há pessoas com milhões de seguidores que nunca vi. Cochicho com Juliana Paes: “Não sei quem é”.

Fonte de atualização também são atores e roteiristas de gerações posteriores, com quem Otavio trabalhou no “Zorra” e na “Escolhinha” . Antes disso, havia participado do espetáculo “Zé”, com Gregório Duvivier, Marcelo Adnet e outros. Com Adnet, aliás, rodou “Nas ondas da fé”, que estreia em dezembro. Com Fábio Porchat, fez “O palestrante”.

— Aprendo demais com essa gente. Eles têm posicionamento, são situados politicamente, ideologicamente com as pautas contemporâneas. Porque não é mole fazer humor agora, com todas essas questões importantes se impondo. A gente tem que ficar calado e segurar essa peteca. Mas esses meninos conseguem mexer com isso, o “Porta dos Fundos” é a prova — afirma. — No “Zorra” teve uma cena em que um branco assaltava um negro e os policiais já chegavam interpretando o contrário. Espelho da sociedade — diz ele, que também destaca “meninas gênias” como Tatá Werneck, Dani Calabresa e Monica Iozzi.

Otavio Müller: 'Nasci para ser pai e ator' — Foto: Ana Branco
Otavio Müller: 'Nasci para ser pai e ator' — Foto: Ana Branco

É toda uma galera que tem Otavio como referência.

— Ele é um ator completo. Consegue fazer comédia e drama com a mesma perfeição e transparecendo muita facilidade. Sabe ser denso e leve até ao mesmo tempo — define Porchat.

Personagens ecléticos

Miá Mello, também em “O palestrante”, destaca uma característica famosa de Otavio, que costuma fazer a liga entre todos no set.

— Ele tem as melhores histórias e gírias. Tem uma narrativa tão sedutora é impossível não ser o centro das atenções. Ele faz o esperar do audiovisual ser tão tão divertido quanto o contracenar.

Adnet concorda:

— Ele dá aula em qualquer posição que joga. Inspira muito gente. Nos bastidores, é o cara mais divertido do mundo. Consegue emprestar isso para a cena também. É querido por nós e o aluno mais bagunceiro da "Escolinha", é do fundão raiz.

Otavio credita essa marca ao fato de ser feliz trabalhando.

— Sinto alegria danada no set, no palco e fazendo essa amálgama de astral com pessoas. Demorei a acreditar que essa poderia ser a minha profissão, a maioria da minha família é de advogados. A primeira batalha que tive foi conseguir sobreviver disso, porque era obcecado com a ideia de ser independente — analisa ele, que largou o trabalho num banco para se formar na CAL e integrar grupo teatral de Bia Lessa, com Fernanda Torres, Júlia Lemmertz, Cláudia Abreu e outros. — Às vezes, penso: “Será que essa alegria vai acabar? Vou ficar velho, chato, de saco cheio de trocar de roupa?”.

Por enquanto, segue alegre — e trabalhando loucamente. Movido pela prerrogativa de “se o projeto, o roteiro e a galera é maneira, eu faço”, tem enfileirado personagens ecléticos que ainda vão encontrar o público: um delegado estuprador no filme “As polacas”, de João Jardim (“Com esse visual aqui, tamb��m pego esse emprego de cara escroto”); um preso político na série “O jogo que mudou a História”, do Globoplay; um pai no longa “Álbum em família”, de Daniel Belmonte; além de vários tipos na série “Vizinhos”, do Canal Brasil.

Família, dislexia e paralisia

Otavio Muller em cena de 'O clube dos anjos' — Foto: Divulgação / Notari
Otavio Muller em cena de 'O clube dos anjos' — Foto: Divulgação / Notari

O filme “O clube dos anjos” levou nove anos para se concretizar. Deu tempo até de Otavio ser convidado por outro diretor para o mesmo personagem — prova de que o papel tinha mesmo que ser dele. O mais importante para o ator, no entanto, foi o aval de Luis Fernando Verissimo. O autor da obra assistiu ao longa. E gostou, garante Otavio.

— Dá um nervoso, né, porque o Verissimo não fala... Mas, um dia, depois da Bienal do Livro, a gente foi jantar, ele me puxou e disse: “Se forem para o Oscar, quero ir também”.

Otavio estava com muitos quilos a mais quando rodou o filme, entre 2016 e 2017. Até porque havia uma baita cozinheira no set. O elenco até maneirava no café da manhã para poder saborear os pratos que ela preparava para as cenas. Eles dão água na boca do espectador.

O ator brinca que é melhor Adriana Junqueira Schmidt, sua companheira, não assistir ao longa. A arquiteta, que faz ioga e nada no mar de Copacabana, é “a personal vida” do marido.

— Sempre fui um gordinho feliz, mas nessa idade tenho que tomar conta da saúde. Comecei a fazer pilates — conta ele, que foi diagnosticado com dislexia quando garoto. — Eu era muito ruim no colégio. A dislexia dificulta a leitura. Decorar foi ficando mais tranquilo com o tempo. Quando estou em cena, concentro.

O ator também convive com as consequências de uma virose que paralisou o lado direito de seu rosto.

— Tenho desarmonização facial faz muito tempo — diz o ator fazendo graça para, em seguida, detalhar de maneira séria o que sentiu. — O meu rosto não mexia, a minha boca caiu, a piscada ficou mais lenta.

Ele sofreu com o problema outras vezes por causa de golpes de ar. Uma delas, aconteceu em cena.

— Eu fazia “A vida sexual da mulher feia” e senti o ar-condicionado bem na frente do palco. Falei: “Fodeu, estou tendo paralisia de novo”. Mas fiz a peça toda.

Adriana foi fundamental nas sessões de fisioterapia que Otavio teve que encarar para se recuperar. Os dois são casados há 26 anos.

— Acho esse negócio de separar uma coisa muito antiga — comenta Otavio.

No que Adriana emenda:

— E separar brigado? Coisa mais cafona — define ela, que tem outros dois filhos da relação com o ator Rômulo Arantes (1957 - 2000).

Adriana e Otavio fizeram dos exs e filhos de outros casamentos uma grande família. Uma terapeuta que praticamente já atendeu todo mundo ali entra em campo quando o negócio aperta. O ator só gostaria de ser uma avô mais presente.

— Minhas filhas ainda demandam. Sou “pai Uber” total. Daqueles que pegam às 3 da manhã em festa. E tem a parte da bebida, da maconha que a gente tem que administrar. Eu e Adriana nos dedicamos, conversamos sobre tudo. Ter filho é responsa. Muita gente tem sem pensar. Eu nasci para ser pai. Para ser pai e ser ator, o resto é o resto. Mas, olha, Maria, já estou enjoado de falar de mim... Você não está, não? — pergunta ele, já caindo na gargalhada.

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