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Cultura Música

Jack White faz de 'Boarding house reach' seu álbum mais audacioso

'Decidi que não entraria no caminho das músicas, que seria passivo', diz o músico ex-White Stripes
O cantor e compositor Jack White Foto: Divulgação/David James Swanson
O cantor e compositor Jack White Foto: Divulgação/David James Swanson

RIO — O mundo que cerca o americano Jack White, 42 anos, o inunda de expectativas. “O último guitar hero”, “o responsável pela ressurreição do vinil”, “dono de imaginação infinita” são alguns dos rótulos que tanto a mídia quanto a indústria volta e meia relacionam ao cantor, compositor, empresário e dono de gravadora — a Third Man Records, selo “ cool ” que lança seus discos e relança álbuns clássicos do rock em vinil.

E ele não costuma fugir da responsabilidade: como resposta, tenta reinventar seu modo de compor para criar sons únicos a cada álbum. Revelado através dos White Stripes, duo criado com sua ex-mulher, a baterista Meg, que alcançou o grande público no começo do século e acabou em 2011, ele lançou, no fim do mês passado, “Boarding house reach”, seu terceiro álbum solo, que vem dividindo opiniões.

CRÍTICA: 'Boarding house reach' é disco que se revela a cada audição

De Nashville, cidade onde mora desde 2009 — e onde recebeu, dois anos depois, o título de embaixador da música local —, ele conversou com o GLOBO por telefone.

“Boarding house reach” tem gospel, piano jazz, sintetizadores, conga, longas passagens narradas... É o seu trabalho mais audacioso?

Com certeza. Não existe um gênero único que você possa apontar para esse disco. Ele passa por todas as fases da música americana que eu possa pensar, e não fiz isso de propósito, apenas saiu assim. Decidi que não entraria no caminho das músicas, que seria passivo. Eram elas que estavam no comando. Então, sim, o resultado foi grandioso. Quando eu estava mixando o álbum, me lembro de ter pensado “uau, isso vai ser difícil para algumas pessoas entenderem de primeira”. É um álbum que você precisa ouvir duas, três ou quatro vezes para entender.

É por isso que as críticas estão tão divididas?

É o que acontece com algo muito denso como esse trabalho. Aconteceu com vários discos históricos. Não sei se é o caso deste, o tempo vai dizer. Mas é interessante ouvir as pessoas debatendo sobre um álbum de novo, fazia tempo que eu não via algo assim, e amo as discussões que a música gera.

O que fez de diferente no processo criativo?

Comecei trabalhando em um quarto sozinho, sem nenhum engenheiro de som, como todo o equipamento velho de gravação que eu tenho desde adolescente. Fui meu próprio engenheiro, como fazia quando era jovem. Criei muitas das melodias na minha cabeça, cantarolando, sem usar instrumentos. Em outras, usei uma bateria eletrônica, algo inédito para mim. Além, claro, do fato de eu ter trabalhado com vários artistas de hip-hop de Nova York e de Los Angeles, que me mostraram uma nova forma de criar. Eu explorei novas áreas no processo de composição e desconstruí o conceito do que uma canção poderia ser, com ideias abstratas.

O disco liderou a lista da “Billboard” de mais vendidos nos EUA, muito por conta das vendas físicas (foram 27 mil cópias de vinil). Na era do streaming, que lição podemos tirar disso?

Definitivamente, eu sinto que existe um tipo de amante de música que realmente quer aproveitá-la na sua capacidade máxima. Por exemplo, fãs de música clássica. Eles querem vinil, querem CD. Amantes de jazz querem garimpar vinis velhos e raros do gênero. Para hip-hop, música eletrônica e tantos outros gêneros da moda, o digital é a maneira mais popular de consumi-los. Isso faz sentido. Você ouve no carro, é portátil... Eu amo a portabilidade da música digital. Mas essa retomada do vinil, da cópia física, é ótima para a indústria. Mostra que ainda existem pessoas que querem viver a experiência de ouvir um álbum da melhor maneira possível. É, sem dúvidas, uma grande conquista ter um álbum em primeiro lugar vindo de vendas físicas em 2018.

Por quanto tempo o formato físico vai sobreviver?

Acho que na próxima década você vai ver as lojas digitais fechando, e tudo o que vai existir é o streaming e o vinil. Serão os dois únicos modos de consumir música.

Você fez parte dos White Stripes, dos Raconteurs, do Dead Weather... E está no seu terceiro álbum solo. Prefere ser um artista solo?

Quando eu estou escrevendo, só quero criar coisas. E criar coisas que eu nunca tenha feito antes. É um desafio. Fazer parte de diferentes bandas ajuda muito nisso, porque você faz colaborações com os outros artistas, o estilo do som muda... Mas é difícil no sentido de que muitas vezes as pessoas te conhecem de uma banda e querem que você continue nela pelo resto da sua vida. Isso é um obstáculo quando você quer fazer algo novo. Atores e diretores parecem encarar isso de uma forma mais fácil, porque os fãs querem ver um filme novo e um ator interpretando um outro tipo de papel, mas, com música, muitas vezes, eles querem ouvir você fazendo sempre a mesma coisa pela qual eles te amaram. Nesse sentido, é melhor ser artista solo.

Recentemente, ouvimos falar sobre o risco de falência da (fábrica) Gibson. Estamos testemunhando a morte da guitarra como instrumento mais relevante?

Essas coisas são cíclicas. Já tivemos períodos em que o saxofone foi muito popular, o acordeão... A guitarra é algo muito grande, muito enraizada na cultura musical do mundo inteiro. Ela vai estar aqui para sempre. Mas estamos no tempo em que a música eletrônica e o hip-hop são grandes, então, é claro, os equipamentos de DJ vão vender mais e as guitarras menos. Só que podem estourar uma ou duas bandas, como foram Nirvana e Pearl Jam, ou os White Stripes e os Strokes, que recuperem o interesse por bandas baseadas em guitarras.

Desde sua mudança de Detroit para Nashville, em 2009, é comum ler artigos dizendo como você e a Third Man Records mudaram a cena musical da cidade. Como isso aconteceu?

Acidentalmente e naturalmente. A Third Man Records é, basicamente, nosso mundo de pessoas que querem relançar discos antigos em vinil e criar ideias novas, ou apenas ensaiar nos nossos estúdios... Mas, claro, tendo uma loja de discos lá, tendo um palco para shows, exibindo filmes, discutindo e vendendo livros (temos agora o Third Man Books), você cria um ambiente criativo ao seu redor. E isso está apenas crescendo.

E Nashville também mudou você?

Ah, sim. O ambiente está sempre mudando o artista, seja numa volta de metrô, numa viagem para o Peru ou numa temporada de alguns meses na Zâmbia. Isso mexe com como você se vê, como vê as pessoas, como vê a vida de uma forma existencial... Ser influenciável pelo ambiente é a melhor parte de ser um artista. E, se você for um artista sortudo, você consegue manipular o ambiente e mudá-lo, se quiser. Quando eu saí de Detroit para Nashville tive que mudar meu ambiente de trabalho e foi para melhor.

Você se casou no Amazonas há 13 anos (com a modelo Karen Elson; eles se separaram em 2013) e aproveitou para fazer um show considerado histórico em Manaus, com Meg. Como foi aquela experiência?

Esse foi um dos mais importantes shows de que eu já fiz parte ( veja na íntegra ). Foi absolutamente deslumbrante. Parecia que estávamos em outro planeta. Foi tão bonito ver o quão felizes as pessoas estavam em Manaus e no Brasil. Isso sempre me toca muito quando lembro daquele show e de todas as experiências que tive aí ( a terceira e última passagem foi em 2015, quando tocou em São Paulo e Porto Alegre ). Mesmo nas vizinhanças mais pobres você vê tantas pessoas rindo e gargalhando. Eu venho de uma cidade pobre nos EUA, Detroit, e você não vê esses sorrisos quando está dirigindo ou caminhando. É um belo sinal de como as pessoas daí são.

Você sempre foi uma pessoa mais reservada e era raro ver ou ler uma entrevista sua. Isso tem mudado, principalmente nos últimos meses. Por quê?

Às vezes eu me faço a mesma pergunta e não acho a resposta... Apenas parece certo, agora, falar, debater sobre o que está acontecendo na música. A música está mudando muito rapidamente por conta da internet e todo ano é diferente do anterior. Eu não estava fazendo shows há três ou quatro anos, então senti que era a hora de falar sobre o que eu estive fazendo e por quê.

“Seven nation army” foi lançada há 15 anos e é, até hoje, um hino entoado em arenas esportivas de todo o mundo, nas mais diversas modalidades. Até torcidas brasileiras cantam o “o-o-o”...

“Inacreditável” é a única palavra que vem na minha cabeça sempre que eu penso sobre isso. Se botassem essa história num filme, falariam “isso é tão fake, nunca aconteceria com uma música”. É muito doido. E eu gosto muito quando vejo pessoas que não conhecem a música, não têm ideia de quem a escreveu, cantando a plenos pulmões. A gente conseguiu criar uma música folclórica em pleno século XXI.