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Cultura Música

Elza Soares: 'Eu sou o movimento feminista'

Cantora lança o disco 'Deus é mulher', que segue a contundência de seu álbum anterior
Elza Soares: show de lançamento do CD será no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, dia 31 de maio Foto: Bárbara Lopes
Elza Soares: show de lançamento do CD será no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, dia 31 de maio Foto: Bárbara Lopes

RIO — Elza Soares diz que, ainda menina, já intuía aquilo que expõe agora de forma clara: “Deus é mulher” (nome do disco que ela lança na sexta-feira, extraído de um verso de “Deus há de ser”, de Pedro Luís):

— Eu era criança e pensava que não era possível que Deus não fosse mulher. E sempre me incomodei com aquela coisa de “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Por que não Espírita Santa? — pergunta Elza, que nas 11 faixas do disco vai além da afirmação de que Deus é mulher. — Deus é uma mulher preta e guerreira. Como Marielle. Mas Deus não está aqui para ser assassinado. Já vimos Cristo ser assassinado. Não podemos mais suportar isso. As mulheres estão pagando um preço muito alto.

As palavras fortes de Elza são no mesmo tom do disco — que terá shows de lançamento no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, de 31 de maio a 3 de junho. Se o premiado “A mulher do fim do mundo”, de 2015, testemunhava de forma sombria um cenário apocalíptico, sufocado pela opressão, em “Deus é mulher” (Deck) a cantora apresenta um disco igualmente contundente, porém mais claro, arejado, como ela gosta de dizer.

CRÍTICA: Elza Soares traz a verdade em cada sílaba de canções animadamente incômodas

— A mulher do fim do mundo morreu ali, mas o espírito ficou. Aquele era um momento fechado, de expor a escuridão. Agora é hora de abrir, de buscar espaço, vida, sol, liberdade. “Deus é mulher” aponta para a saída desse momento pesado, fúnebre, terrível que o país vive. Lembro dos anos 1970. Mas o Brasil é tão abençoado que vai sair, como já saiu outras vezes. Penso sempre no meu amigo Cazuza: “Eu vejo o futuro repetir o passado”.

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Nos primeiros segundos, o novo trabalho deixa claro o que Elza quer dizer com “apontar para a saída”. À capella, a cantora entoa: “Mil nações moldaram minha cara/ Minha voz uso pra dizer o que se cala/ O meu país é meu lugar de fala”. Os versos de “O que se cala”, de Douglas Germano, caem com um baque surdo em meio a uma nação que se fechou ao diálogo entre diferenças — e na qual o conceito originalmente inclusivo de “lugar de fala”, como legitimação da voz do oprimido, passou a ser erguido como bandeira excludente, e é isso que a cantora subverte agora.

Ou seja, como no álbum anterior, Elza segue — mais do que isso, avança — no mergulho concreto nas grandes questões de seu tempo. Questões que envolvem sobretudo a violência contra negros, mulheres, gays e qualquer um dos que contrariam um certo conceito de “natureza”. “Ora, cara, não me venha com esse papo sobre a natureza/ Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia”, ela canta em “Circuito fechado”, de Mariá Portugal.

“O Brasil é o país mais preconceituoso do mundo, e eu nasci nele. Não tinha como eu ser diferente”

Elza Soares
Cantora

Com “A mulher do fim do mundo”, Elza se tornou referência para militantes negros, LGBT e feministas — “Maria da Vila Matilde”, denúncia sagaz contra violência doméstica gravada no disco de 2015, foi entoada pelos manifestantes na passeata no dia seguinte ao assassinato de Marielle, há dois meses. A cantora lembra que, ao longo de sua vida, nunca militou diretamente em causas políticas ou sociais — a despeito de sua música ter afirmado a todo momento o poder negro e feminino, além da liberdade sexual.

— Eu não participava do movimento feminista, mas eu sou o movimento feminista. A dor é minha, o movimento feminista é nato em mim. Aprendi isso em casa com minha mãe, Dona Rosália, uma mulher negra e guerreira — diz, ecoando a descrição que havia feito de seu Deus mulher. — O Brasil é o país mais preconceituoso do mundo, e eu nasci nele. Não tinha como eu ser diferente.