Martha Batalha
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Martha Batalha

Escritora e jornalista.

Informações da coluna

Martha Batalha

Escritora e jornalista

1. Em 2012, eu morava em Hoboken, cidade na margem do Rio Hudson e de frente para Manhattan, quando passou o furacão Sandy. O rio transbordou e Hoboken submergiu, transformando-se numa gigantesca banheira. Pela janela eu acompanhei a água marrom avançar pelas ruas, carros descolando-se do asfalto, garagens e apartamentos sendo inundados. Foram dias sem luz, comércio ou transporte, aceitando a comida gratuita distribuída na praça. Estávamos fora de perigo, mas o vinho que tomávamos de noite não era celebratório, e sim para nos acalmar. A força das águas jogou um barco no meio da calçada. Alguém escreveu no casco: Global warming is real (Aquecimento global é real).

2. Em 2017, eu morava em Los Angeles quando se deu um incêndio nas montanhas próximas. Duzentas mil pessoas foram evacuadas. Mil e setecentos bombeiros tentavam conter o fogo. Trezentos e sessenta quilômetros de floresta se tornaram carvão. As escolas cancelaram as aulas, devido à péssima qualidade do ar. Os dias escuros eram marcados por um nublado sinistro, de sol acobertado por fumaça. Eu me sentia dentro de um pesadelo, ou experimentando uma super-realidade, as notícias sobre mudança climática se materializando nas cinzas cobrindo os carros. Não podia ser normal, mas ficou. Eu aprendi a esperar todo ano pela temporada de incêndios.

3. Também em 2017, nós cancelamos uma viagem a Porto Rico por causa do furacão Maria. Fomos à ilha em 2019, visitar a família do meu marido. Caribenhos estão acostumados a furacões. É um evento natural, que acontece de quando em vez. Mas o Maria foi diferente, recorde em destruição e intensidade. Centenas de mortes, meses sem água ou luz. Eu me lembro da viagem de carro até a casa de uns primos, vendo pela janela quilômetros de paisagem devastada. Era inacreditável que vento e chuva causassem um estrago à altura de um Godzilla. Prometi levar a sobremesa do almoço, mas chegando na cidade não havia onde comprar. Tudo estava fechado, destruído, abandonado. Porto-riquenhos haviam se acostumado a viver entre escombros, e tocavam suas vidas da melhor forma.

4. Em julho de 2022, eu estava no Sul da Espanha quando foram registradas as temperaturas recordes de calor no país. Mais de 11 mil pessoas morreram. Sevilha era uma sauna a vapor, deserta durante o dia, e com paredes e chão mornos durante a noite. O melhor lugar era a bica de água próxima à torre La Giralda, na qual me banhei algumas vezes. Também me molhei no laguinho do palácio Alcázar. No desespero do calor eu vi o lago como refúgio e não como relíquia mourisca. Nenhum segurança me impediu, porque nenhum era doido de estar ali.

5. A essa altura alguém pode pensar que eu sou pé-frio. Que é melhor não me convidar para um cafezinho, porque minha presença antecede cataclismas. Mas é o contrário. Parece que o mundo perdeu a sorte, e com ela um controle invisível, uma harmonia essencial. As chuvas e alagamentos no Sul, os incêndios na Califórnia, o calor na Europa, os furacões mais intensos são reflexo de um desequilíbrio coletivo. Acostumar-se aos reveses parece ao mesmo tempo errado e necessário. O que nos resta é resiliência, planejamento e voto.

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