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Cultura

Luiz Schwarcz lança livro de memórias: 'A depressão é totalitária'

Em 'O ar que me falta', fundador da Companhia das Letras abre o jogo sobre bipolaridade e missão de agradar o pai, que morreu em 2006, e cuja imagem até hoje procura quando vai à sinagoga
O editor Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, lança livro de memórias sobre depressão, bipolaridade e relação com o pai Foto: Marco Ankosqui, SP/BRA / Agência O Globo
O editor Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, lança livro de memórias sobre depressão, bipolaridade e relação com o pai Foto: Marco Ankosqui, SP/BRA / Agência O Globo

SÃO PAULO — No Yom Kipur, o Dia do Perdão dos judeus, os olhos de André Schwarcz marejavam e sua culpa parecia encher toda a sinagoga. Nascido na Hungria, André conseguira escapar, sozinho, do trem que o levava, com o pai, o religioso Láios, ao campo de extermínio de Bergen-Belsen. Luiz, o filho brasileiro de André, tomou como missão garantir a felicidade do pai e libertá-lo do silêncio que o aprisionava. Fracassou.

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No livro de memórias “O ar que me falta”, que acaba de lançar, Luiz Schwarcz tenta quebrar o mutismo do pai e o seu próprio. O fundador da Companhia das Letras deixa o sucesso editorial meio de lado para narrar a infância solitária e atormentada pela insônia de André (que morreu em 2006), o desejo de agradar aos pais, a iniciação sexual com prostitutas e uma longa depressão bipolar, que demorou a ser diagnosticada, na qual se intercalam surtos melancólicos e arroubos de fúria. Schwarcz abordou publicamente a depressão e a bipolaridade pela primeira vez em 2019, após uma briga na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) .

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Luiz Schwarcz e seu pai André, cuja memória ele revisita no livro "O ar que me falta" Foto: Reprodução / Distribuição
Luiz Schwarcz e seu pai André, cuja memória ele revisita no livro "O ar que me falta" Foto: Reprodução / Distribuição

Em entrevista ao GLOBO, Schwarcz fala sobre o medo de ser lembrado mais pelo soco na Flip do que pelos livros que publicou, as idas à sinagoga à procura da presença do pai e por que não seguiu a vida religiosa.

Como foi passar de editor a editado?

Já tinha tentado tantas vezes escrever sobre o meu pai, sobre o silêncio dele, que o que estava represado saiu precisando da leitura dos editores. Acatei muitas das sugestões. O livro causou uma certa reação de pudor por parte de alguns dos primeiros leitores. Acharam que eu me expunha demais. Publicar um livro nos coloca em uma posição de muita fragilidade. Apesar de trabalhar acalmando quem eu editei, como editado sou extremamente inseguro e ansioso. Às vésperas de sair o livro, minha angústia não encontra outra saída que não o pesadelo.

Apesar da reação de pudor de alguns dos primeiros leitores, você manteve a decisão de se expor. Por quê?

Depois de tanto silêncio tomando conta da minha vida, que eu só quebrava na análise, parti para a solução oposta. Houve quem achasse que eu devia cortar o capítulo sobre meus arroubos violentos, típicos da bipolaridade. Como editor, prezo pela integridade do livro. E este pedia que eu fosse transparente. Como cortar as partes em que falo de sexualidade, tanto no começo da minha vida quanto no tratamento da depressão? Não sou um grande escritor. Se há alguma força neste livro, é a franqueza.

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Você falou publicamente sobre ser depressivo e bipolar pela primeira vez após a briga ocorrida na Flip em 2019. Esse episódio foi o estopim para a escrita do livro?

Tive dois arroubos violentos em situações sociais que atribuí à bipolaridade. O da Flip e outro quando gritei com uma funcionária. Nas duas vezes, escrevi imediatamente dizendo que era culpa da bipolaridade. Na Flip, minha psiquiatra e outros disseram que muita gente que não é bipolar, sendo insultada como eu fui, também reagiria daquela forma. A situação me deu um desgosto muito grande. Eu já queria fazer um livro sobre o meu pai, a depressão dele. Esse episódio da Flip e o nó na garganta que tive esquiando nas montanhas me deixaram mais disposto a tratar da minha própria depressão publicamente.

Quando foi o episódio que você narra no começo do livro, a falta de ar que sentiu esquiando?

Janeiro do ano passado. Comecei a escrever em fevereiro. Primeiro, conversei com o Drauzio Varella, contei que ia escrever um livro não mais sobre o silêncio do meu pai, mas sobre minha depressão. Ele disse que esse livro podia ajudar muita gente a ver que por trás do sucesso também há sofrimento. Passei a dizer que estava escrevendo para ajudar as pessoas. No final, admiti que escrevi este livro para mim, para transformar um sofrimento muito grande naquilo que é o objetivo da minha vida: produzir narrativas, fazer livros.

No livro, você diz que chega a pensar que será conhecido pelo soco na Flip e não pelos livros que publicou. Por quê?

A depressão e a bipolaridade são totalitárias. Não deixam espaço para mais nada. Quando perco o controle em público, sinto muita culpa e medo de ser identificado por aquilo. Recentemente, estava em contato com uma galeria americana e imaginei que se eles dessem um Google no meu nome a primeira coisa que ia aparecer é que dei um soco num sujeito na Flip! É esse tipo de pensamento que me vem à cabeça. É a doença querendo me vencer.

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Henry Sobel queria que você fosse rabino. Você ficou tentado a seguir a vida religiosa?

Participei do grupo de jovens da sinagoga onde Sobel era o rabino. Virei líder do grupo e era chamado para fazer prédicas na tarde do Yom Kipur. Aí começou minha carreira literária, com metáforas filosóficas bem rudimentares. Sobel percebeu minha capacidade de liderança e quis convencer meus pais de que eu seria um bom rabino. Mas eu nunca me interessei. Não tinha o sentimento religioso e estava caminhando cada vez mais para a esquerda.

No livro, sua relação com o judaísmo parece ser mediada pela memória do seu pai. E a dele com a memória do pai dele, um judeu religioso. Como é hoje sua relação com a fé judaica?

Não me considero religioso. Por muito tempo, tentei me revoltar contra o judaísmo, talvez por não aguentar a tristeza do meu pai, a culpa dele, que tomava a sinagoga inteira. Hoje, vou à sinagoga no Yom Kipur e no Rosh Hashaná (ano novo judaico) e tento rezar. Meu pai tinha a voz afinada e, apesar dos olhos marejados, cantava alto, sentia aquele canto. Minha religiosidade é tentar imitar meu pai, sentir a liturgia como ele sentia, porque quero estar perto dele. Vou à sinagoga e canto porque lá encontro meu pai.

Capa de "O ar que me falta", livro de memórias de Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "O ar que me falta", livro de memórias de Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"O ar que me falta"

Autor: Luiz Schwarcz.

Editora: Companhia das Letras.

Páginas: 200.

Preço: R$ 59,90.