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Artigo: Ishiguro manteve um pé em cada um dos impérios insulares

Autor nipo-britânico venceu o Nobel de Literatura nesta quinta
Kazuo Ishiguro vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2017 Foto: TOBY MELVILLE / REUTERS
Kazuo Ishiguro vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2017 Foto: TOBY MELVILLE / REUTERS

RIO – Qualificar Kazuo Ishiguro como nipo-britânico tem menos a ver com o fato de ele ser natural de Nagasaki e mais com as evidências de que sua literatura – em inglês, desde sempre – conservou uma delicadeza japonesa. A despeito, inclusive, de sua própria vontade. Em 1990, diante de uma resenha no “Sunday Telegraph”, na qual o crítico enxergava uma gueixa sob a pele do mordomo protagonista de “Os resíduos do dia”, Ishiguro se espantou. “Nem um bom crítico consegue se livrar da ideia de que japoneses escrevem sobre japoneses e ingleses escrevem sobre ingleses,” disse, em entrevista num salão do Copacabana Palace. “Eu nunca encontrei uma gueixa em toda minha vida!”

Ganhar o Nobel antes de um nipo (Haruki Murakami) e de um britânico (Ian McEwan) sempre bem cotados nas bolsas de apostas, ressalta, de modo enviesado, que Ishiguro manteve um pé em cada um dos impérios insulares. Seus dois primeiros romances – “Uma pálida visão dos montes” (1982, mesmo ano em que se tornou cidadão britânico) e “Um artista do mundo flutuante” – ainda foram ambientados no Japão. Os protagonistas eram, respectivamente, uma mulher de meia-idade e um pintor idoso.

Porém, se o terceiro, “Os resíduos do dia”, já se passava na Inglaterra do mordomo, isso não implicava o abandono da sutileza oriental. Nele, como em “Uma pálida visão dos montes”, Ishiguro praticava a arte zen da elipse de modo magistral: os acontecimentos históricos essenciais às tramas ficcionais, isto é, a Segunda Guerra e a bomba atômica, são apenas aludidos. Pensando bem, japoneses e ingleses têm muito mais em comum do que dirigirem carros com o volante à direita. O culto ao subentendido, por exemplo.

Em sua curta bibliografia de sete romances, o último dos quais foi a fantasia medieval “O gigante enterrado” (2015), um dos pontos altos é “Noturnos” (2010), única coletânea de contos. Nada para se espantar. A contenção inerente ao gênero potencializou o talento evocativo. De uma forma ou de outra, as cinco histórias agridoces relacionam música e passar do tempo. No âmbito biográfico, elas acenam para o passado.

Ishiguro começou a escrever livros tarde, aos 24 anos. Até então, queria ser cantor-compositor, só escrevia letras. “Meu aprendizado com as palavras se deu através da canção”, contou, na mesma entrevista concedida no Rio, pouco depois de ter voltado ao Japão pela primeira vez desde 1960. Seus ídolos? Leonard Cohen, Neil Young, Tom

Waits, Bruce Springsteen e, em especial, seu antecessor no Nobel de Literatura, Bob Dylan. Apesar da mudança de foco, Ishiguro carregou a musicalidade para os textos.