Livros
PUBLICIDADE

Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro

Quando publicou “O planeta lilás”, um de seus trabalhos mais pessoais, Ziraldo Alves Pinto, que morreu neste sábado, aos 91 anos, o dedicou a Carlos Drummond de Andrade, o mais famoso poeta brasileiro na época. E não poderia ser diferente. Definida pelo cartunista como um “ato de amor ao livro”, a obra de 1979, que acaba de ganhar uma nova edição da Melhoramentos cheia de preciosidades, celebra a palavra, a poesia e a criação artística.

Drummond era a maior referência literária de Ziraldo. E é possível que Ziraldo tenha mudado a maneira de Drummond ver o desenho em suas últimas décadas de vida. Mais do que amigos, os dois mineiros — e escorpianos — também foram parceiros editoriais, como mostram outros relançamentos. Co-autoria de 1985, o livro infantil “História de dois amores” volta este mês às livrarias pela Record. Já “O pipoqueiro da esquina”, de 1981, uma reunião de epigramas jornalísticos de Drummond convertidos em charge por Ziraldo, mereceu uma publicação de luxo com tiragem limitada pela Filmes de Minas no fim do ano passado.

Com três décadas de diferença e personalidades opostas, eles se uniram no amor à poesia. O extrovertido Ziraldo sabia como ninguém se aproximar do “urso polar” Drummond, tratando o acesso ao resguardado itabirano como um “privilégio sem limites”.

— Drummond tinha consolidado a fama de pessoa fechada, mas Ziraldo foi se aproximando aos poucos e surgiu uma amizade muito profunda — lembra Tarcísio Vidigal, que além de amigo de Ziraldo foi produtor de “Menino maluquinho: o filme” (adaptação cinematográfica do livro mais famoso do cartunista) e idealizador da nova edição de “O pipoqueiro da esquina”. — Drummond sempre se mostrou muito carinhoso com ele. A mineirice os aproximou, assim como a paixão pela arte.

Afastado da vida pública desde 2019 por conta de um AVC, Ziraldo está impossibilitado de contar essa história mais uma vez. Mas o cartunista, que completa 91 anos em outubro, contou diversos casos com Drummond em entrevistas antigas e também em seu depoimento para o livro “O dossiê Drummond” (1994), de Geneton de Moraes.

A amizade começou em 1969, quando ele lançou “Flicts”, sua primeira obra infantil. O livro virou um sucesso após receber elogios rasgados de Drummond, justamente um dos maiores ídolos do mineiro de Caratinga. “O conto contado por Ziraldo só merece um adjetivo, infelizmente desmoralizado: ‘maravilhoso’”, escreveu o poeta em uma crônica no Jornal do Brasil. “Não há outro, e sinto a pobreza do meu cartuchame verbal, para definir ‘Flicts’. Mas exatamente nisso está uma das maravilhas de ‘Flicts’: não carece de definição. É”.

Como agradecimento, Ziraldo lhe enviou aquele que considerava o seu principal trabalho até então: o desenho de um astronauta presenteando a esposa com um cesto de estrelas. “Eu estava mandando para ele o melhor de mim, uma vontade de dizer-lhe o tanto que eu o amava e a imensidão da minha alegria, minha total incapacidade de dizer-lhe muito obrigado”, contou Ziraldo em o “Dossiê Drummond”.

No mesmo ano, o cartunista ilustrou a capa da segunda edição de “Contos do aprendiz”, de Drummond. Ziraldo conta que o poeta a considerou “a capa mais bonita do mundo”. O fato é que o desenho foi emoldurado e continua pendurado em uma parede do apartamento onde Drummond morava, em Copacabana. O seu neto, Pedro Augusto, vive hoje no imóvel, e guarda lembranças da amizade dos dois.

— Minha mãe (Maria Julieta) dizia que considerava Ziraldo o irmão que ela não tinha tido — lembra Pedro Augusto.

Admiração mútua

Ser admirado pelo autor de “Claro enigma” representava um reconhecimento não apenas como cartunista, mas também como escritor. Isso sempre foi importante para Ziraldo, já que o conceito gráfico de seus livros não podem ser dissociados de seu texto. Uma de suas obras mais famosas, “O planeta lilás” é um grande poema ilustrado, que mostrou a gerações de crianças que a literatura é maior do que tudo, engloba o próprio universo. Na história, um bichinho minúsculo constrói uma nave espacial para fugir de seu monótono planeta Lilás. Após uma viagem cheia de aventuras, ele descobre que, na verdade, a existência que o cerca é um livro. E, seu planeta natal, uma violeta em potencial.

Drummond e Ziraldo em foto da época do lançamento de “História de dois amores”, livro infantil assinado por ambos que conta a história de dois elefantes — Foto: Arquivo pessoal
Drummond e Ziraldo em foto da época do lançamento de “História de dois amores”, livro infantil assinado por ambos que conta a história de dois elefantes — Foto: Arquivo pessoal

“O planeta lilás” volta agora em uma nova edição, com esboços e rascunhos inéditos, que mostram todo o processo de criação de Ziraldo. Também acaba de virar um espetáculo musical, que entrou em cartaz ontem, no Futuros – Arte e Tecnologia (Flamengo).

— A obra trata os livros como foguetes para as viagens mais bonitas — diz a diretora Mariana Kaufman. — Mas para mim, antes disso, é uma ode ao poder da imaginação como libertação e à arte como possibilidade de inventar novos mundos. Ao voltar da sua aventura, o bichinho consegue enfim enxergar o seu planeta com outra cor. É como se ele pudesse recriá-lo através da literatura.

A influência de Drummond aparece indiretamente em “O planeta lilás” — e daí o tributo ao amigo na primeira página do livro. Mas faltava ainda uma primeira parceria direta. Ela aconteceu em 1981, com “O pipoqueiro da esquina”. Na época, o poeta publicava pequenas tiradas satíricas nas páginas do Jornal do Brasil, conhecidas como “pipocas”. Ziraldo, que já era seu colega no jornal, percebeu que os chistes poderiam funcionar como charges — e propôs acrescentar os desenhos que faltavam.

Autor do ensaio “Drummond caricaturista”, o poeta e pesquisador Eucanãa Ferraz acredita que a amizade entre os dois era movida a estímulos. A convivência com Ziraldo teria levado Drummond a explorar ainda mais a sua verve desenhista. Em uma crônica daquele ano, o poeta revelou o desejo de publicar uma obra em que os dois invertessem os papéis — ele na parte gráfica e Ziraldo no texto.

— O Ziraldo entendeu que no texto Drummond tinha um salto para a imagem, e isso foi motivo de excitação para o poeta — diz Ferraz. — A minha intuição é que a aproximação com Ziraldo deixou o poeta à vontade para se soltar mais como caricaturista. Drummond tinha talento para isso, os melhores retratos dele foram feitos por ele mesmo.

Telefonemas diários

Um belo dia, Ziraldo lia as páginas do GLOBO quando descobriu que Drummond havia terminado de escrever um livro infantil. Perguntado pela reportagem se já tinha ilustrador, o poeta respondeu: “Estou com vontade de pedir a Ziraldo, mas não sei se ele vai aceitar”. Perplexo com a humildade do amigo, o cartunista aceitou o convite com a maior das emoções. Drummond, por sua vez, fez questão de tratar o livro como coautoria, dividindo os direitos.

A premissa de “História de dois amores”, que volta a ser editado pelo Grupo Record com novo projeto gráfico e imagens inéditas, não poderia simbolizar melhor a ligação afetiva dos dois mineiros. O pulgo Pul se instala atrás da orelha do elefante Osbó e eles passam a viver juntos. Com muita camaradagem, atravessam desertos e enfrentam guerras. A convivência tem seus altos e baixos, claro. O privilégio de ser amigo de um bicho importante sobe à cabeça do pulgo, que começa a ficar um tantinho convencido. Mas no fim o amor salva tudo, como indica o título.

Nessa época, Ziraldo telefonava diariamente para o elefante — ou melhor, Urso Polar. Reservado no tête-à-tête, o poeta costumava se soltar ao telefone (o melhor horário para ligar era 11h, lembra o cartunista). O cartunista também mandava muitas cartas — e algumas estão preservadas em seu instituto. Uma de 1981, em especial, parece antecipar o texto de “História de dois amores”: “Aí cara, eu queria era me mudar para a sua casa, te ver todos os dias, conversar com você, falar besteira e sacanagem. Mas me dava um certo medo — você entende — um medo de mudar o centro de uma relação que já existia e que me era tão boa. E fiquei te rodeando. Agora, nego, você me desculpa: com a bandeira (da porta) que você me abriu, tamos aí”.

— O Ziraldo me disse mais de uma vez que a vida só vale a pena quando se tem afeto — lembra Adriana Lins, sobrinha do cartunista que trabalha na catalogação de suas obras no Instituto Ziraldo. — Uma vez Drummond escreveu uma crônica dizendo coisas boas de Ziraldo, que ficou pensando: “Por que Drummond falou de mim?”. E aí ele percebeu que devia ser porque Ziraldo naquele momento vinha sendo bombardeado na imprensa e que precisava de um afago do amigo. É assim que eles se entendiam, na base da admiração, do carinho e do companheirismo.

“O planeta lilás - 40 anos”

Autor: Ziraldo. Editora: Melhoramentos. Páginas: 48. Preço: R$ 52,90.

“História de dois amores”

Autor: Ziraldo. Editora: Companhia das Letrinhas. Páginas: 64. Preço: R$ 25.

Mais recente Próxima Da turma do Pererê ao Menino Maluquinho, relembre personagens mais marcantes criados por Ziraldo
Mais do Globo

Órgão é alvo de operação da PF para desarticular esquema de monitoramento ilegal de autoridades e produção de notícias falsas

O que é Abin e como funciona agência, na mira de operação da PF

Rosalia Messina Denaro e suas parentes desempenhavam funções na organização criminosa

'Dinastia do Crime': irmã de chefão da máfia siciliana é condenada a 14 anos de prisão na Itália

Ganhe dois ingressos para o maior festival de música e entretenimento do mundo com o Clube O GLOBO!

Você com Clube no Rock in Rio 2024: Assinante O GLOBO concorre a um par de  ingressos

Vice-presidente conquistou melhores resultados nas intenções de voto do que o presidente e atual candidato em um cenário de disputa direta com o ex-presidente republicano

Eleições EUA: Com crise de Biden, Kamala cresce em pesquisas e se torna opção mais viável contra Trump

Nesta quinta-feira, estão sendo cumpridos cinco mandados de prisão preventiva e sete mandados de busca e apreensão contra supostos envolvidos no esquema

Especialista afirma que é uma energia 'adormecida' dentro do corpo posicionada em um chakra específico: o básico, localizado na base da coluna

Método 'Kundalini': conheça a prática feita por Anitta e Angélica para estimular o autoconhecimento

Análise encontrou teores elevados em seis marcas líderes de mercado, e em três delas o suficiente para oferecer riscos ao motorista

Bauducco, Wickbold e Panco: veja o que dizem marcas de pão com elevados teores de álcool

Eixos temáticos contemplam desburocratização e simplificação de registros e aberturas de empresas, acesso a crédito e redução do spread bancário, digitalização e inovação, além do combate à pirataria

Parcerias com ministérios vão buscar novas soluções para o setor de comércio e serviços