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Por — São Paulo

A escritora paulistana Lilia Guerra é filha, neta e sobrinha de empregadas domésticas. Fez faxina durante dois anos, enquanto estudava. Ainda criança, acompanhava a avó no trabalho e sempre ouvia a mesma recomendação.

— Ela sempre me dizia: “Fica quieta” — recorda.

Na época, Lilia obedecia, mas hoje ela não somente fala como dá voz à avó, à mãe, às tias e a tantas mulheres que sustentaram suas famílias com o trabalho doméstico. Seus romances são povoados por empregadas, como Sá Narinha, a narradora de “O céu para os bastardos”, lançado em setembro. Moradora de uma periferia chamada Fim-do-Mundo, Sá Narinha é estimada pela vizinhança, mas só anda de cabeça baixa desde que o filho, Júlio César, foi preso por feminicídio. Amor de mãe mesmo ela tem por Betinho, o filho da patroa, uma “bisca” que desconfia que a empregada sumiu com um par de brincos e esbanja no mercado.

Sá Narinha reclama que “no bairro dos bacanas” não passa “de mais uma Maria vestindo o uniforme azul-marinho”. Na literatura brasileira, a história é outra: essas “Marias” estão chamando cada vez mais a atenção. Empregadas domésticas negras (como são 65% das mulheres que exercem a função no Brasil, segundo levantamento do Dieese de 2022) estão no centro de outros romances recentes, como “Solitária”, de Eliana Alves Cruz; “Louças de família”, de Eliane Marques; e “Áurea”, de Henrique Rodrigues; das HQs “Confinadas” e “Os santos”, de Leandro Assis e Triscila Oliveira; e aparecem nos poemas de “Ninguém quis ver”, de Bruna Mitrano, que se descreve como “a sobrinha a filha a neta da empregada”.

— Nós, crianças que circulávamos nas casas de família, crescemos e estamos na idade de lembrar, de escrever, de cantar. Quando vou a batalhas de rap, vejo muitas meninas compartilhando essas experiências — diz Lilia.

Ecos distantes

Filho e sobrinho de domésticas, o carioca Henrique Rodrigues é autor de “Áurea”. Decidiu escrever depois de ouvir que Tia Áurea tem medo de ir ao shopping e ser confundida com uma ladra. No romance, Áurea tem mais de 60 anos e, depois de uma vida de faxina, finalmente conclui os estudos. Enquanto espera ser chamada para pegar o diploma, recorda a pobreza e a invisibilidade: “Se eu estivesse andando com uma faca enfiada nas minhas costas ninguém iria reparar.”

— Cresci ouvindo essas histórias tão típicas de famílias pobres e negras, de meninas que saíam da escola para trabalhar e desenvolvem com os patrões uma relação de aparente cordialidade, mas que é um eco da escravidão. Minha mãe fazia faxina para a própria cunhada e não podia sentar no sofá da sala. Só muito mais tarde eu entendi o porquê — diz Rodrigues, que comemora que a mãe, após ler o livro, decidiu retomar os estudos. — Numa sociedade como a nossa, colocar uma doméstica como heroína de um romance é uma pequena revolução.

A brasileira Sônia Roncador, professora da Universidade do Texas em Austin, nos EUA, estuda como a representação da empregada doméstica na literatura brasileira se alterou desde a Abolição, em 1888. Mesmo as elites esclarecidas não incluíram o trabalho doméstico no projeto de modernização. Na ficção da abolicionista Júlia Lopes de Almeida, as empregadas aparecem como ladras e transmissoras de doenças. Em modernistas como Carlos Drummond de Andrade e José Lins do Rego, diz Roncador, nota-se certa romantização da “mãe preta” e nostalgia da “devoção” dos trabalhadores domésticos. Essa suposta devoção foi questionada por Clarice Lispector, que reservou às domésticas papéis marginais em romances como “Perto do coração selvagem” e “A paixão segundo G.H.” (no qual a ação se passa no quarto de empregada).

— Paulo Mendes Campos dizia que as empregadas faziam parte do universo literário de Clarice. A relação patroa-empregada era claramente incômoda para ela, que tratava do assunto com humor e lirismo em suas crônicas. Ela percebia que a suposta devoção das empregadas às patroas dissimulava um ressentimento, um ódio, que às vezes saía por meio da ironia. Clarice conta de uma empregada que sempre a elogiava quando ela “não merecia”. Dizia que ela estava linda quando saía do banheiro com a toalha enrolada na cabeça, por exemplo — diz Sonia. — No acervo de Clarice na Fundação Casa de Rui Barbosa há uma entrevista que saiu no (jornal francês) Le Monde com um psiquiatra sobre a saúde mental das empregadas. Está toda sublinhada.

Sonia observa que as empregadas só deixaram de ser personagens sem vida pessoal, que existiam apenas para servir, quando elas próprias começaram a publicar relatos biográficos, como “A luta que me fez crescer”, de Lenira Carvalho, e “Ai de vós! Diário de uma doméstica”, de Francisca Souza da Silva. E quando ex-trabalhadoras domésticas ocuparam a literatura, como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo.

Em “Louças de família”, romance de estreia da poeta gaúcha Eliane Marques, a narradora Cuandu passa a investigar as opressões (de raça, gênero e classe) suportadas por sua árvore genealógica depois da morte de sua Tia Eluma, empregada doméstica que vivia em quarto “desjanelado” no casarão de uma família rica. A única herança que ela deixou aos parentes foram dívidas, tão modestas quanto fora sua vida. Eliane diz que a empregada doméstica representa um “estranho familiar” que estrutura relações de poder na sociedade brasileira.

— A empregada não é uma “estranha” apenas na casa dos patrões. Ela vive em trânsito, no vaivém. Por conhecer os segredos e o modo de vida dos ricos, ela parece estranha também em seu lugar de origem. Presta serviços nos dois lugares, que se desestruturam quando ela morre — afirma a escritora. — Essas mulheres não são humildes. Elas vivem com o mínimo do ponto de vista financeiro, mas são ricas linguística e culturalmente. Fazem comida e fazem faxina, mas também fazem teoria.

Para Eliane, a emergência da literatura de autoria negra é que possibilitou que as empregadas se tornassem protagonistas.

—Nossa origem nos permite ter acesso à subjetividade dessas empregadas de uma maneira diferente de autores que nasceram na casa dos patrões e por muito tempo fizeram uma literatura preocupada com problemas “burgueses” ou “brancos” ou “sem cor”.

Não faltam descrições de abusos nas obras protagonizadas por domésticas. Na graphic novel “Os santos”, de Leandro Assis e Triscila Oliveira, lançada em novembro, tem assédio sexual, desrespeito a direitos trabalhistas e patroa que vasculha redes sociais da empregada atrás de um colar que ela perdeu. Na trama, quatro irmãs negras trabalham para a mesma família da elite carioca (que no passado empregou a mãe delas).

Maniqueísta ou não?

Assis começou a publicar tirinhas sobre as relações entre patrões e domésticas nas redes sociais em 2019, com base em sua experiência como membro de uma classe privilegiada. Já Triscila nasceu numa família de domésticas de Niterói e começou a fazer faxina aos 13 anos. Só parou uma década depois. Ao entrar no projeto, Triscila emprestou suas vivências pessoas e familiares ao roteiro. Antes de “Os santos”, os dois publicaram em papel “Confinadas”, HQ sobre uma empregada que é obrigada a passar a quarentena da Covid-19 com a patroa, uma influencer rica.

Triscila conta que muitos leitores dizem que não é possível existirem patrões como os retratados nas tirinhas:

— Sempre nos acusam de forçar a barra, exagerar. Isso mostra que tem gente que continua cega pelos próprios privilégios. Dizem que as HQs são maniqueístas. Mas é a sociedade brasileira que é maniqueísta desde sua origem — rebate. — Também recebemos muitos relatos de filhos e netos de empregadas dizendo que agora entendem o que suas mães e avós passaram. Tenho orgulho de ajudar a tirar essas trabalhadoras da invisibilidade.

Serviço:

  • ‘O céu para os bastardos’
    Autor:
    Lilia Guerra. Editora: Todavia. Páginas: 176. Preço: R$ 54,90.
  • ‘Áurea’
    Autor:
    Henrique Rodrigues. Editora: Estrela Cultural. Páginas: 208. Preço: R$ 69,90.
  • ‘Louças de família’
    Autor:
    Eliane Marques. Editora: Autêntica Contemporânea. Páginas: 280. Preço: R$ 64,90.
  • ‘Os santos’
    Autores:
    Leandro Assis e Triscila Oliveira. Editora: Todavia. Páginas: 176. Preço: R$ 99.

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