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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Indiferente à política, o engravatado Alexandre, narrador de “Os dias da crise”, romance de Jerônimo Teixeira, saiu às ruas em junho de 2013 somente para acompanhar a namorada, uma professora universitária. No entanto, no meio da multidão, ele ouve “o convite da pedra” e, por alguns instantes, cogita estraçalhar a vidraça de uma agência bancária. Mais tarde, descreve os protestos como um “estranho evento político sobre o qual muito se escreve e do qual pouco se entende”.

A verdade é que até hoje muito se discute o que foram as chamadas Jornadas de Junho. Revolta progressista pela ampliação de direitos? Caminho para a ascensão da extrema direita? Era ou não era só pelos 20 centavos? Esta falta de respostas tem instigado escritores brasileiros que, nos últimos anos, lançaram diversas obras literárias, incluindo ficção e poesia (confira abaixo), que ganham ainda mais os holofotes agora, quando se completa uma década daquele “estranho evento”. O mais recente é “O seu terrível abraço”, livro de Tiago Ferro, previsto para julho.

‘Ficamos ridículos’

Teixeira assume que o “espanto” diante da fúria das ruas o motivou a ambientar naquele período “Os dias da crise”, lançado em 2019. Para o autor, aquelas semanas de protestos aprofundaram irreversivelmente as divisões na sociedade brasileira. Não à toa, as pedradas de Alexandre são dirigidas a todos: esquerdistas, liberais e reacionários. Cínico e gozador, o personagem sugere que os atos foram motivados “por um simples desejo de andar, apenas andar (...) Por isso ninguém se importou em saber aonde se queria chegar.”

— Junho solidificou um dogmatismo estúpido à direita e à esquerda. O adversário político virou inimigo. A comédia que há no livro é uma tentativa de mostrar como ficamos ridículos — explica Teixeira. — O Brasil é um país de tantas indignações que o espanto maior não é termos saído às ruas, mas voltado para a casa.

Diferentemente de Alexandre, o narrador sem nome de “O seu terrível abraço”, de Tiago Ferro, sente “vergonha por não ter participado das manifestações de rua”. “Não consigo me sentir parte daquilo”, diz. Flashes dos protestos surgem ao longo da narrativa, fragmentada ao extremo, cheia de idas e vindas no tempo. Do presente, o narrador enfermo reflete sobre a ruína do próprio corpo e do país na última década e recorda sua “juventude transviada terceiro mundo da classe média paulistana”.

Ferro afirma que não pretendia escrever “um romance essencialmente político”. Embora “O seu terrível abraço” seja impiedoso ao retratar a alienação de uma parte da classe média que, no livro, só se aproxima da realidade dos pobres ao contratar empregadas domésticas, comprar droga de pequenos traficantes e ouvir os Racionais MC’s.

— Parte dessa classe privilegiada, que se beneficia dos aspectos menos confessáveis da realidade brasileira, também foi às ruas em 2013. Mas ela estava disposta a arriscar a própria pele pela transformação radical do país? Esse é o dilema do intelectual de classe média que não aderiu à extrema direita nos últimos anos— diz Ferro.

As primeiras elaborações literárias dos protestos surgiram quando as ruas ainda estavam cheias. Em 17 de junho de 2013, apareceu na internet a antologia “Vinagre”, organizada por Fabiano Calixto e publicada pelo coletivo Os Vândalos. O livro, que ganhou uma segunda edição apenas quatro dias depois da primeira, reunia versos de dezenas de poetas, como Guilherme Gontijo Flores, Micheliny Verunschk e Cide Piquet em solidariedade aos manifestantes, que cobriam o nariz com tecidos encharcados de vinagre para aliviar os efeitos do gás lacrimogêneo.

‘ora (direis)...’

No ano seguinte, Alex Simões incluiu a série de poemas “Via vândala” em seu livro “Contrassonetos”. Os versos dialogam com o livro “Via Láctea”, de Olavo Bilac, parnasiano que conversava com as estrelas. Simões preferiu ouvir as ruas de Salvador. “ora (direis), foda-se a copa! ‘certo,/ perdeste o senso’. E eu vos direi, no entanto/ que para assim gritar eu tenho tantos/ motivos, que me alegra não ter perto/ de mim uma granada”, diz o “soneto vândalo de vinte centavos”.

— A poesia não tem a cientificidade do método historiográfico. Mas tem liberdade de criação e por isso é capaz de relevar as fissuras e dar conta da singularidade de um testemunho — diz Simões.

Professora da Universidade de Brasília, a crítica literária Regina Delcastagnè explica que junho de 2013 tem surgido de forma mais explícita na poesia e mais “diluída” na prosa. Ela também nota que o assunto é abordado mais diretamente por autores homens — e que autoras mulheres escrevem menos sobre política no sentido mais estrito do termo (“os espaços de poder ainda nos parecem vetados”, especula a crítica). No entanto, diz ela, nem sempre é preciso citar os protestos para retratar o período.

A escritora Beatriz Malcher, por exemplo, não menciona as manifestações em “Carro alegórico”, texto teatral publicado em 2021. Mas o leitor não demora a descobrir o espírito de junho ali. A peça se passa num cenário apocalíptico em que um grupo de homens e mulheres puxa um trenó guiados por um sujeito agressivo que deverá conduzi-los ao “Progresso”. Completam o grupo uma criança e uma idosa, que representam a História e a Terra. Os puxadores do trenó se parecem com a multidão de junho: sabem que não chegarão ao Progresso (a Terra não vai aguentar), mas não conseguem entrar em acordo. Cada um tem uma pauta diferente. Como conciliá-las? A peça (como junho) termina sem resposta.

— A arte não traz soluções, mas nos ajuda a questionar o que aconteceu ali, a pensar em como tornar efetivas as potencialidades políticas daquele movimento. Como junho ainda lampeja no nosso presente? — provoca Malcher.

Delcastagnè aponta que a literatura também é capaz de preservar o “sentimento de uma época”. No caso, o desalento que tomou parte do país na última década.

Imaginação solta

Esta percepção do momento é um dos méritos de “Sebastopol”, de Emilio Fraia, lançado em 2019. Em “Dezembro”, primeiro dos três contos que compõem o livro, Lena, uma alpinista que sonhava com o Everest, sofre um acidente e se reinventa como palestrante motivacional. A data da tragédia é significativa: 13 de junho de 2013. Naquela noite, os atos em São Paulo contra o aumento das tarifas do transporte público foram reprimidos com tamanha violência que o apoio aos protestos cresceu e as ruas se encheram ainda mais.

A certa altura, Lena diz: “Sei que estamos em 2018, mas a minha impressão é ter vivido esses anos todos sem ter vivido nada.” Nádia, a narradora de “Agosto”, último conto do livro, expressa sentimento semelhante: “Voltei a pensar no estado geral das coisas, na minha geração, que seria esmagada por mais dez, quinze anos de paralisia.”

Fraia explica que quis retratar a “atmosfera de conflito e derrota, de perplexidade e melancolia, apreensão e curiosidade sobre o futuro” que se criou após junho sem “fazer um tratado sociológico com as roupas da ficção”.

— Minha aposta é que a literatura que não opera apenas como espelho da realidade pode nos fazer imaginar, dar forma a perguntas e sentimentos que ainda não conhecíamos. São histórias que não podem ser resumidas naquilo que querem dizer. Abdicar do poder da palavra final acaba sendo sua força — diz ele, que, na noite de um dos protestos, lançou a HQ “Campo em branco”, com DW Ribatski, em São Paulo. — Ninguém apareceu.

De 2013 a 2023, livros daquele junho

‘Vinagre: uma antologia de poetas neobarrocos’ (Os Vândalos, 2013): Reunião de versos de dezenas de poetas em solidariedade às manifestações.

‘A grande marcha’, de Ewerton Martins Ribeiro (Circuito, 2014): Inspirada em “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, a novela retrata o que se passou em Belo Horizonte em junho de 2013.

‘Contrassonetos’, de Alex Simões (Mondrongo, 2015): O livro traz a série de poemas “Via vândala”, que mistura Olavo Bilac e os protestos em Salvador.

‘Meia-noite e vinte’, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2016): Em uma manifestação em Porto Alegre, um publicitário se converte em black bloc e depreda a loja da própria família.

‘Lambe-lambe’, de Sérgio Fantini (Jovens Escribas, 2016): Em 50 ficções curtas, o autor tenta responder quem eram os brasileiros que foram às ruas.

‘O marechal de costas’, de José Luiz Passos (Alfaguara, 2016): Biografia romanceada de Floriano Peixoto que avança em direção ao presente, no qual uma cozinheira, apoiadora do PT, assiste criticamente aos protestos no Rio.

‘Gostar de ostras’, de Bernardo Ajzenberg (Rocco, 2017): Manifestação em São Paulo marca virada na vida do protagonista, Jorge, que desperta de sua “mornidão existencial".

‘Viandante: labirintos entressonhos’, de Sonia Regina Bischain (Ciclo Contínuo, 2017): Quando as ruas se enchem de novo, em 2016, três amigos se recordam de junho de 2013.

‘Avenida Molotov’, de Pedro Guerra (Quelônio, 2018): Três personagens — uma jornalista, um porteiro e um publicitário — retratam as contradições das Jornadas de Junho.

‘Eufrates’, de André de Leones (Record, 2018): De um bar em São Paulo, dois amigos, um ex-petista e outro que nunca acreditou no partido, assistem às ruas em convulsão pela TV.

‘Maior que o mundo’, de Reinaldo Moraes (Alfaguara, 2018): São Paulo está em chamas, mas Kabeto só quer tomar uma cerveja no bar Farta Brutos.

‘Sebastopol’, de Emilio Fraia (Alfaguara, 2018): Sem referências diretas aos protestos, os três contos do livro retratam a melancolia do país nos anos seguintes às Jornadas de Junho.

‘Os dias da crise’, de Jerônimo Teixeira (Companhia das Letras): Um executivo cínico participa das marchas, zomba das ideologias diversas e sugere que as manifestações nasceram do simples desejo de andar.

‘Carro alegórico’, de Beatriz Malcher (Hecatombe, 2021): Texto teatral que capta o espírito de junho ao retratar um grupo de oprimidos que parece incapaz de conciliar suas pautas diversas.

‘Maquinação’, de Ronaldo Pelli (Universo Guará, 2022): Um protesto reprimido violentamente em junho de 2013, no Rio, serve de prelúdio a uma distopia ultratecnológica.

‘O seu terrível abraço’, de Tiago Ferro (Todavia, 2023): Um homem doente, que não se sente parte das manifestações, reflete sobre a ruína do país e recorda sua juventude de alienação e privilégios.

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