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Atração da Flip, Leïla Slimani lança no Brasil o premiado romance ‘Canção de ninar'

Franco-marroquina recebeu o mais importante prêmio literário da França ao contar história inspirada em crime real cometido por babá
A escritora Leïla Slimani, que vem à Flip deste ano Foto: Fernando Eichenberg / Agência O Globo
A escritora Leïla Slimani, que vem à Flip deste ano Foto: Fernando Eichenberg / Agência O Globo

RIO — Leïla Slimani recebe o repórter em casa com o bebê no colo e logo se desculpa, avisando que a babá está para chegar. A imagem não poderia ser mais emblemática. Seu romance “Canção de ninar”, lançado este mês no Brasil, gira em torno do assassinato de duas crianças por sua babá.

Inspirada em um episódio real ocorrido em Nova York, em 2012 , a história caiu no gosto do público. O livro vendeu 600 mil exemplares na França e foi traduzido em 40 países (best-seller nos Estados Unidos e na Inglaterra), levando a autora a um posto de destaque na literatura contemporânea francesa. Graças a “Canção de ninar”, Leïla ganhou há dois anos o prestigiado prêmio literário Goncourt, tornando-se a 12ª mulher a recebê-lo em seus 114 anos de existência.

Atração da próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de 25 a 29 de julho, essa escritora franco-marroquina de 36 anos está sempre envolvida em debates com temáticas feministas. Antes de “Canção de ninar”, publicou “No jardim do ogro”, narrando as desventuras de uma mulher viciada em sexo.

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Depois, lançou “Sexo e mentiras — a vida sexual no Marrocos” (acompanhado de uma HQ baseada no mesmo livro), com depoimentos sem tabus de jovens sobre a opressão sexual no país africano. E recusou um convite para assumir o Ministério da Cultura no governo do francês Emmanuel Macron. Enquanto amadurece seu novo romance, Leïla escreve agora uma peça de teatro que terá um consultório médico como cenário e o aborto como tema.

“Quando mulheres, em Paris, defendem o direito de serem importunadas, elas não se dão conta de o que é viver em cidades como Casablanca ou Cairo”

Leïla Slimani
Escritora

Nesta entrevista, Leïla comenta sobre relacionamentos familiares, feminismo nos tempos de denúncias de abusos sexuais e literatura.

“Canção de ninar” trata das ambiguidades da relação entre pais e babás, e também da luta de classes, a partir de um casal que é confrontado à diversidade social. Poderia explicar?

Sempre pensei que a babá fosse um personagem interessante para um romance. É alguém que tem um lugar à parte, vive na casa, faz parte da intimidade sem ser membro da família, e que tem uma outra vida fora dali. É alguém que, às vezes, ensina as crianças a caminhar, as ouve falar pela primeira vez. Fui criada por uma babá no Marrocos, onde as babás em geral vêm de um meio desfavorecido. O estranho nesta relação é que não há verdadeiramente regras. É uma relação de dominação, mas não é sempre o mesmo que domina. O patrão domina porque tem o dinheiro, mas a babá tem poder sobre as crianças. E o poder é imenso. Quando fiz minhas pesquisas para o livro, ouvi amigas dizerem: “Não ouso dizer para a babá que não fiquei contente ontem, porque não quero que ela se vingue nas crianças”. É uma relação rica para um romance, porque tudo perpassa, o econômico, o social, o cultural, a maternidade, a questão de gênero — a relação entre mulheres.

Você se disse “fascinada” pela descoberta da organização econômica e sociológica desta relação.

É uma relação fascinante, que existe desde a Antiguidade. Nas peças do teatro grego, já havia babás para cuidar das crianças. As mulheres sempre partilharam a educação dos filhos, não é uma invenção moderna. As burguesas o faziam para levar sua vida burguesa, e as operárias e camponesas deixavam seus filhos com uma outra mulher para irem trabalhar. E nesta relação há algo de muito ambíguo, porque a mãe quer que seus filhos amem a babá, mas não demais. E é a única relação salarial no mundo baseada no amor. A babá é paga para amar e ser amada. A prostituição é baseada no sexo, não nos sentimentos.

Suas protagonistas são sempre mulheres. Você se define como uma feminista visceral. Que feminismo você defende?

Um feminismo universalista. Procuro combater essa espécie de relativismo cultural, de pessoas que defendem o feminismo adaptado a cada cultura. O feminismo deve ser construído. E penso que deve incluir os homens. Passa por aí o sucesso da igualdade entre homens e mulheres.

Você critica um certo desconhecimento em relação ao fato de que misoginia e patriarcado são partilhados por outras sociedades além do mundo árabe-muçulmano.

Isso é engraçado. Se escrevi “Sexo e mentiras” em forma de depoimentos é porque as mulheres precisam se reapropriar da palavra, e que digam “eu”. Quando se diz “eu”, nos reapropriamos de nosso destino, de nossa dignidade e de nossa história. E quatro meses depois, com o caso Harvey Weinstein e a hashtag #metoo, se começou a dizer na Europa: “As mulheres devem liberar a palavra. Talvez os homens ocidentais não sejam tão gentis e perfeitos assim”. Quando houve as agressões em Colônia (na Alemanha) , se disse que era devido ao fato de que se tratavam de muçulmanos. Sim, há um problema entre o mundo muçulmano e o sexo, mas isso não explica tudo. Há, antes, o problema do patriarcado, que é universal. E fico contente que as pessoas comecem a se dar conta disso.

Você considerou totalmente inoportuno o manifesto de cem mulheres, co-assinado por Catherine Deneuve, que aponta um exagero nas denúncias de agressões sexuais, reclamando o direito de as mulheres serem importunadas pelos homens. Por quê?

Eu cresci no Marrocos, um país em que você, como mulher, se questiona quando decide caminhar sozinha na rua, porque nem sempre é simples. Você pode ser insultada, assediada, apalpada. Quando mulheres, em Paris, defendem o direito de serem importunadas, elas não se dão conta de o que é viver em cidades como Casablanca, Kinshasa ou no Cairo, em que não pode atravessar seu bairro sem o véu. O direito de não ser importunada é o direito de não ser considerado como um intruso no espaço público. É o direito de ter um corpo que é seu e de mais ninguém. Penso que houve uma forma de leviandade e de desenvoltura da parte dessas mulheres, e uma falta gritante de solidariedade em relação a todas as demais para quem existir na rua é muito difícil.

Você acredita que o movimento nascido a partir do #metoo terá resultados?

Sim, estou convencida. Porque há uma tomada de consciência maciça. E também de homens. Penso que o medo está trocando de lado. Há homens  bem mais atentos ao que dizem e ao que fazem, porque simplesmente têm medo das consequências. E mesmo em países onde isso não ocorreu de forma tão intensa, como nos Estados Unidos e na França, apesar de tudo as pessoas ouvem falar e se dão conta de que há algo acontecendo. Penso que é algo importante que vai provocar mudanças, e também para nossos filhos. A próxima geração é que vai realmente mudar as coisas.

Segundo você, muitas mulheres interiorizaram muitas normas do sistema patriarcal...

Certamente. Nós interiorizamos todas essas normas. Em “Canção de ninar”, interiorizamos a culpabilidade, o fato de que a mãe é a pessoa indispensável na família, a necessidade de ser perfeita.

Você defende uma literatura feminina ou acredita que exista apenas literatura?

Para mim, há duas literaturas: a boa e a ruim. Não penso que exista uma literatura feminina. Mas é verdade que a literatura sofreu a falta de vozes femininas que pudessem testemunhar o que é ser uma mulher, no olhar do mundo através da condição de uma mulher.

Capa do livro "Canção de ninar" Foto: Divulgação
Capa do livro "Canção de ninar" Foto: Divulgação

Por que, para você, a literatura é um ato subversivo, não importa o que se escreva?

Porque é a coisa mais livre do mundo. Pode-se fazer tudo. Na literatura não há nenhum limite. Pode-se falar de tudo, do mal, da pedofilia, do estupro, da violência. Pode-se escolher como personagem principal um personagem sanguinário e fazer o leitor se apegar a ele. É um espaço de liberdade absoluta, e amoral, não se está ali para julgar as pessoas, não é um tribunal, e é por isso que é muito subversivo.

LEIA TRECHO EXTRAíDO DE ‘CANÇÃO DE NINAR’

"A mãe estava em choque. Foi o que disseram os bombeiros, o que repetiram os policiais, o que escreveram os jornalistas.

Ao entrar no quarto onde jaziam os filhos, ela soltou um grito, um grito das profundezas, um uivo de loba. As redes tremeram. A noite se abateu sobre esse dia de maio.

Ela vomitou e a polícia a descobriu assim, com a roupa suja, agachada no quarto, soluçando como uma desvairada. Ela uivou até arrebentar os pulmões. O enfermeiro fez um sinal discreto com a cabeça e eles a ergueram, apesar de sua resistência, de seus chutes. Eles a levantaram devagar e a jovem residente do samu lhe deu um calmante. Era seu primeiro mês de estágio. (...)

Os vizinhos se reuniram na frente do prédio. Principalmente as mulheres. É quase hora de ir buscar as crianças na escola. Elas olham a ambulância com os olhos inchados de lágrimas. Choram e querem saber. Ficam na ponta dos pés. Tentam descobrir o que acontece atrás do cordão de isolamento, no interior da ambulância que arranca com todas as sirenes ligadas. Cochicham informações umas para as outras.

O rumor já corre. Algo de ruim aconteceu com as crianças.

É um belo prédio da rue d’Hauteville, no décimo arrondissement. Um prédio onde os vizinhos se cumprimentam, sem

se conhecer, com bons-dias calorosos. O apartamento dos

Massé fica no quinto andar. É o menor apartamento do edifício.

Paul e Myriam ergueram uma divisória no meio da sala quando o segundo filho nasceu. Eles dormem em um cômodo apertado, entre a cozinha e a janela que dá para a rua. Myriam gosta de móveis chineses e tapetes marroquinos. Na parede, ela pendurou gravuras japonesas.

Hoje ela voltou mais cedo. Encurtou uma reunião e deixou para o dia seguinte a análise de um dossiê. Num assento retrátil no metrô da linha 7, ela pensava em fazer uma surpresa para os pequenos. Chegando, passou na padaria. Comprou uma baguete, uma sobremesa para as crianças e um bolinho de laranja para a babá. O favorito dela. Pensava em levá-los ao carrossel. Eles iriam juntos fazer as compras para o jantar. Mila pediria um brinquedo, Adam chuparia uma casquinha de pão sentado no carrinho.

Adam está morto.

Mila não vai resistir."