Julio Maria
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Julio Maria

Por — São Paulo


RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 03/07/2024 - 14:44

A falta de respeito da plateia

O artigo aborda a postura da plateia em shows, destacando a falta de respeito e atenção dos espectadores, que muitas vezes atrapalham a experiência dos artistas e do público. Também menciona a plateafobia, a aversão de algumas pessoas por serem plateia.

Ir a shows é uma atividade que pratico com uma cota majoritária de dever e outra de paixão. Como jornalista, penso que estar diante de um artista, mesmo daquele que não costuma me agradar, é dever de ofício. Como plateia, não. É estranho, mas é assim que somos, incluindo os artistas quando saem de casa para serem plateia: só merece nossa sagrada presença, rara concessão de nosso sagrado tempo, o artista que não oferecer riscos, que tocar algo que conheçamos, que nos entregar as emoções que queremos sentir ou, abrimos uma via de complacência, que seja hypado nas redes sociais. Ao eliminarmos a possibilidade de um artista nos surpreender, estamos eliminamos a possibilidade de um artista ser um artista.

Ser plateia deveria ser um ato de amor, sobretudo enquanto a noite ainda se recupera de uma pandemia bíblica, mas não é. E as maiores aberrações que se passam durante um show têm sido produzidas não por aquilo que acontece no palco, mas por tudo o que ouvimos saindo dela, a “sagrada plateia”. Shows recentes que vi em boas casas de São Paulo, todas supostamente alinhadas com os anseios de seus “clientes diferenciados”, renderam experiências pavorosas. Em um deles, uma cantora delicada tentava concentrar-se enquanto dois casais sorriam e falavam muito alto. Sentados em cantos opostos do salão, portanto produzindo um ruído em surround 7.1, eles acabavam com o clima criado pelo trio de voz, piano e contrabaixo acústico. Em outro, duas mulheres davam as costas para o artista enquanto suas vozes agudas pareciam sair de um amplificador Fender valvulado.

Não desisti e, dias depois, fui ao subsolo de um restaurante que possui uma espécie de clube de jazz secreto, na divisa de Pinheiros com Jardins. Coisa fina. O trio era ótimo, mas a noite teve como estrela um funcionário da casa. A figura existe em outros nightclubs e, talvez, deva ser estudada (se você não o viu, vai vê-lo, e se lembrará desta coluna). É o bartender percussionista. A coisa fica bem ruim porque, por mais que ele seja um ótimo criador de drinks, será sempre um péssimo percussionista. Seus solos de coqueteleira têm vida rítmica própria e podem ser ouvidos no instante em que um pianista tocar algo sensível como "Stars Fell On Alabama" ou uma cantora respirar nos silêncios de "Luíza". O último que vi desafiava os músicos a se manterem no ritmo de "My Funny Valentine" enquanto batia escandalosas piñas coladas e sorria, vitorioso, para um amigo garçom.

Como perdi os shows, só me restou criar teorias para aliviar meus instintos tarantinescos e preservar o réu primário depois de assistir à performance do percussionista de gravata e ouvir tantos solos de plateia. Ok, a culpa por ser assim não é dessas pessoas. Elas sofrem de algo que muitos de nós temos, mas que conseguimos controlar por algum tempo. Apesar de estarem diante de um palco, elas odeiam plateias porque são portadoras de plateafobia (a origem grega faz tudo ficar mais verossímil). Alguém com fobia de plateias não fará silêncio para não legitimar o protagonismo alheio. Acostumadas a serem elas o objeto dos likes de seus seguidores, e likes são as novas palmas, essas pessoas não lidam nada bem com a ideia de observarem outro ser que não sejam elas mesmas recebendo aplausos efusivos depois de cada dois ou três minutos de uma canção. Mas, então, por que estão ali, na plateia que tanto odeiam? Primeiro porque não sabem que são plateófobos, esse mal nem havia sido identificado há dois minutos, e, depois, porque os shows não as incomodam, desde que quem esteja no palco não ofusque a sua luz.

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