Julio Maria
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Por — São Paulo

RESUMO

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GERADO EM: 04/07/2024 - 04:30

O etarismo: um desafio para todos

O etarismo afeta todos, inclusive Joe Biden e artistas como Marília Gabriela e Eric Clapton. A peça da atriz é um exemplo de como lidar com o preconceito de forma leve e bem-humorada. A autoetarismo é uma forma de proteção contra a velhofobia.

De todos os ismos tóxicos, o único que não preserva ninguém é o etarismo. Não há privilegiados aqui. Mulher, homem, trans, cis, indígena, branco, preto, judeu, ateu, magro, gordo, sem-terra, latifundiário, rapper, cantora lírica, presidente da República, o Gilberto Gil, a Marília Gabriela e o Eric Clapton. Eu, você, nossos pais e nossos filhos, se estivermos vivos, estaremos no alvo da fobia final. Aos 50 anos seremos, aos olhos do mundo, inábeis tecnológicos. Aos 60, ultrapassados na fala e impotentes na força. Aos 70, ridículos na dança e senis na memória. Aos 80, invisíveis. O etarismo não perdoa: ou é a última degradação àqueles que sobreviveram a todas as outras degradações ou a primeira a quem nunca experimentou o amargor de um preconceito. É a malha fina dos julgamentos sociais.

Não há o que fazer contra velhófobos (apesar de o corretor tentar expulsar essa palavra do texto, tive de usá-la por absoluta falta de um termo que designe quem pratica velhofobia. Tentei “etarista” nos dicionários Houaiss, Michaelis e Aurélio, e nada. Velhos também sofrem etarismo gramatical.) Ofender idosos é mais fácil por serem eles mais vulneráveis, sem militância que os proteja nas redes sociais nem passeata que os exalte na Avenida Paulista.

Os poderosos também sofrem. Joe Biden, de 81 anos, é alvo de piadas há uma semana. O etarismo acaba de ser instrumentalizado pela direita radical com a ajuda de humoristas etaristas de esquerda que não entenderam que Lula será a próxima vítima. Então, que façam mais piadas aqui: velhos não têm lugar de fala porque, por fraqueza do corpo ou desalento da alma, não falam mais.

Uma proteção eficiente é o autoetarismo, um subgênero em que os idosos invertem a lógica rindo de si e desconcertando detratores. Ao entrevistar Paul McCartney, em 2019, pratiquei etarismo estrutural ao perguntar a ele se sua idade à época, 77 anos, não cobrava o preço na afinação. Do outro lado do telefone, Paul cantou o primeiro verso de “Oh, darling!”, nota por nota, no impressionante tom original gravado pelos Beatles, em 1969. Aos 82 anos, Paul voltará ao Brasil em outubro. Eu, aos 51, não sei se terei joelhos para vê-lo de pé por três horas seguidas. Depois de assistir a um show de Gilberto Gil, em 2015, ouvi de um amigo jornalista que aquela seria a última apresentação do baiano. Gil não estava bem de saúde e a sensação de meu amigo foi de despedida. Choramos. Aos 82 anos, Gil anunciou, conforme o colunista Ancelmo Gois, uma turnê mundial para 2025. Meu amigo morreu dormindo em 2020. Em 2018, quando tinha 73 anos, Eric Clapton virou manchete no mundo ao tocar no Hyde Park, em Londres. Um título de muitos jornais foi: “Triste adeus: após anunciar surdez, Eric Clapton faz show de despedida.” Clapton volta ao Brasil em setembro, aos 79 anos.

Marília Gabriela deu um nó no etarismo ao desidratá-lo, expondo-o ao ridículo. Aos 76 anos, ela decidiu fazer, ao lado do filho Theodoro Cochrane, a peça “A última entrevista de Marília Gabriela”, que chega ao Rio em agosto depois de lotar sessões aqui em São Paulo. Marília e Theo avisam no início que ela fará o espetáculo lendo o texto. A idade não lhe permite mais decorar diálogos. A plateia cai no riso. Marília repassa fracassos com tamanha leveza que todos eles, até sua entrevista com Madonna feita em 1998, massacrada pelos fãs da cantora, se tornam vitórias. “Qual o sentido da vida?”, pergunta a peça. Marília olha para a plateia e, sem ler, responde algo que só entenderá quem viveu tempo suficiente para isso.

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