Julio Maria
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Julio Maria

Somando tudo, da primeira nota ao último verso, minha prodigiosa carreira de compositor durou exatos 12 dias. Eu estava com Covid, isolado no quarto dos fundos, em pleno Natal de 2022, quando me senti autorizado pela desconfortável onipresença da morte a deixar sete canções para a eternidade. Ou para meus filhos. Ou para alguém que resolvesse ouvir meus últimos áudios. Um samba-canção, um samba-blues, dois blues, uma trova argentina, uma cantiga renascentista e alguma outra coisa muito triste que não sei nomear. Depois de finalizar, enviei tudo para alguns amigos. Foi quando minha carreira começou a acabar. “Cara, legal, mas tem alguma coisa aí que eu já ouvi”, disse um. “Bacana, soa João Bosco”, disse outro. “Gostei, mas...”, preparou o golpe final o mais técnico dos ouvintes: “Aquela segunda parte é de Caetano. Veja lá.” Era. Três míseras notas extraídas de algum lugar da música “Queixa” que a memória trouxe de volta como um sopro original. Uma autenticidade fake. De gênio a impostor, percebi que minha vida criativa estaria fadada às colagens. Joguei a toalha. Eu nunca seria um grande compositor. Eu não saberia lidar com aquilo que não era meu.

Considerado o abismo que separa minha infâmia experiência autoral das grandes criações, entendi que compor não é só banhar-se na luz dos escolhidos. É suar, muito, mas é também driblar as armadilhas das referências, afrouxar as correntes da tradição e, sobretudo, desconfiar de ideias que se apresentam o tempo todo como se fossem nossas. Chegar ao veio de ouro é uma conquista de poucos. Bem poucos. Se não fosse assim, seria fácil responder a isso: qual intérprete, banda ou compositor surgiu nos últimos 30 anos com força de originalidade referencial? Se nunca criamos tanto, onde estão as novas bases estéticas? Seria a música uma fonte finita de combinações originais ou seria finito o poder de criação autêntica (aquela que não tem mais do que 50% de sua carroceria colocada sobre o chassi de outro autor)? Seríamos todos escravos intelectuais da exuberância dos criadores da MPB dos anos 1960?

Influências existem desde a era medieval, mas a questão é o equilíbrio. Gilberto Gil nunca escondeu o tanto de Luiz Gonzaga que há em si, mas sua pulsão criativa se sobrepôs à matriz. Tom Jobim só passou a banhar-se de Villa-Lobos e Debussy depois de ter certeza de que nada seria mais forte do que ele mesmo. Djavan libertou-se dos grilhões da ancestralidade, presos ao tornozelo de feitores de gêneros seculares como o samba e o baião, ao derreter suas bases, remodelá-las e encontrar sua verdade.

O ruído começa quando as sensações provocadas por uma obra são acionadas não pelos atributos do artista de corpo presente, mas por suas matrizes. Somos atingidos pelo jovem Will Santt ou pelo tanto de João Gilberto que ele nos traz? Sentimos João Fênix por ele ou pelo tamanho da fatia de Ney Matogrosso que nos serve? Quantas cantoras mais surgirão à sombra de cinco ou seis escolas de canto em um país com quase 220 milhões de habitantes? E lá fora? Bruno Mars, o maior titã pop dos últimos anos, é um simulacro triplo, um ponto de conexão de três matrizes poderosas: Prince, Michael Jackson e James Brown.

Quem não viveu a era das fundações só pode imaginar. Como terá sido ver pessoas que não se pareciam com nada, como Gil, João Bosco, Milton Nascimento, Chico Buarque, Alceu Valença, Rita Lee, Zé Ramalho, Raul Seixas, João Gilberto, Jorge Ben, Caetano, Tim, Elis, Gal, Macalé, Ney, Bethânia, Hermeto e tantos, emergindo um após o outro? Qual a sensação de ser exposto a um festival de assombros num mundo em que as triangulações não existiam pelo simples fato de que o artista e a referência eram a mesma pessoa? Nunca saberemos.

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