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Solidão, palestras e mansão em Moscou: documentário retrata vida de Mikhail Gorbachev

Criticado em seu país, último líder soviético diz acreditar que russos vão reconhecer sua busca por democracia e liberdade
Cenas do documentário "Gorbachev. Céu", dirigido por Vitaly Mansky Foto: Divulgação
Cenas do documentário "Gorbachev. Céu", dirigido por Vitaly Mansky Foto: Divulgação

A câmera entra pela casa, mostrando papéis de parede e lustres que já eram cafonas há pelo menos duas décadas. Numa mesinha, quatro telefones de fio ficam lado a lado, um deles de disco, aumentando a sensação de anacronismo. O proprietário aparece primeiro de costas: um homem corpulento, idoso, careca e com uma inconfundível mancha na cabeça. À frente dele, um iMac destoa do ambiente, exibindo um vídeo com imagens dos anos 1980 e com uma narração que lembra a famosa frase “Se não eu, quem? Se não agora, quando?”

Mikhail Gorbachev , o político russo que mudou a geopolítica do planeta ao promover as mudanças que levaram ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), então diz: “Você sabia que eu quase chutei o balde?”.

Hoje com 90 anos — e 88 durante as filmagens —, Gorbachev é o protagonista de “Gorbachev. Céu”, documentário do diretor russo Vitaly Mansky que integra a programação do festival “É Tudo Verdade”, cujas exibições serão on-line e gratuitas entre 8 e 18 de abril. O filme é uma longa entrevista que revela como vive hoje o último líder soviético e quais suas lembranças sobre o passado. Naturalmente as que ele topa compartilhar.

Gorbachev não é de falar muito e seus silêncios chegam a ser motivo de conflitos com Mansky, um entrevistador provocativo, conhecido pelo ótimo documentário “Sob o sol” (2015), sobre as aparências simuladas pela propaganda norte-coreana. Mas o diretor insiste e consegue arrancar de Gorbachev breves impressões sobre antecessores e sucessores na hierarquia russa de poder, como Lênin, Stálin, Brezhnev, Andropov, Yeltsin e Putin.

Ele se declara socialista e diz ainda ver Lênin “como nosso Deus”. Lembra que o tema de seu trabalho de conclusão do ensino médio foi “Stálin é nossa glória militar, Stálin é nossa juventude e missão”, mas se surpreende que milhões ainda o apoiem, considerando seu conhecido autoritarismo. Chama Yeltsin de “idiota” e “maluco”. E se cala para não bater tão de frente com Putin, o atual presidente russo, outro famoso pelo pouco apreço pela democracia, que aparece na TV ao fundo em vários momentos da entrevista.

Dinheiro de palestras

Ele também trata de seu período no poder — secretário-geral do Partido Comunista entre 1985 e 1991 e único presidente da história da URSS entre 1990 e 1991, antes de sua renúncia e do colapso do Estado socialista — e recorda seus programas de abertura política e modernização econômica, a perestroika e a glasnost. Gorbachev rebate um questionamento de Mansky de que ele seria “um herói para a Europa, mas não para a Rússia”. O político diz acreditar que no futuro os russos irão reconhecer o quão fundamental foi para o mundo sua busca por democracia e liberdade: “Não tenho medo, leva tempo, requer paciência”.

O último presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev em sua casa, em Moscou, em cena registrado por Vitaly Mansky no documentário "Gorbachev. Céu" Foto: Divulgação
O último presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev em sua casa, em Moscou, em cena registrado por Vitaly Mansky no documentário "Gorbachev. Céu" Foto: Divulgação

No filme, tão importante quanto o próprio político são os espaços ocupados por Gorbachev. Sua mansão fica próxima a Moscou e foi um presente dos líderes das repúblicas que buscaram independência com o fim da URSS. Trata-se de uma estrutura gigante, com um elevador instalado a posteriori para ajudar Gorbachev a se locomover entre os andares. Os ângulos captados pelo documentário ressaltam sua solidão naquele local cheio de quartos vazios, com exceção dos muitos empregados. O próprio entrevistado afirma em diversos momentos como sente falta de Raisa, sua mulher, morta em 1999 em decorrência de uma leucemia.

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Outro local fundamental para o personagem é o prédio da Fundação Gorbachev, inaugurada por ele após deixar o governo. Gorbachev conta que vive do dinheiro que ganha dando palestras pelo mundo e cita ao menos uma polêmica decorrente desses pagamentos: “Tive alguns problemas quando voltei para casa com os royalties de US$ 400 mil. Mas foi só desta vez. Das outras, foi menos” — neste caso, qualquer comparação com o Brasil fica a cargo do leitor, não culpem o repórter.

Enquanto o mundo lembra dele pelo fim da URSS e, como consequência, da Guerra Fria, Gorbachev aproveita para expor um lado mais romântico. Em uma cena, declama versos de Sergei Yesenin, célebre poeta russo que se suicidou em 1925, aos 30 anos. Em outras, simplesmente canta como se estivesse sozinho para passar o tempo. A Mansky, ele resume seu sentimento em dar entrevista e afirma acreditar na importância de aparecer no documentário. “O tempo mostra que minhas forças estão indo embora. Isso te mobiliza ou desmobiliza”, diz.

‘Até o fim, ele defendeu a permanência da URSS’

As histórias abordadas por “Gorbachev. Céu” estão entre as mais expressivas para compreender o século XX. Para analisar algumas passagens do filme, como a que Gorbachev chama Boris Yeltsin de “idiota”, O GLOBO convidou Angelo Segrillo, historiador da USP e autor do livro “Os russos” (Editora Contexto).

O filme sugere que Gorbachev se tornou um herói na Europa, mas não na Rússia, onde seria até hostilizado. Existe essa percepção distinta na Rússia sobre o período Gorbachev?

Sim. Apesar de Gorbachev ter sido popular entre os russos no início da perestroika, quando concedeu mais liberdades aos soviéticos, foi perdendo popularidade ainda neste período, pois foram surgindo problemas econômicos, inflação etc. Depois foi creditado pelo desmoronamento da União Soviética como líder fraco, que não conseguiu impedir isso. As liberdades iniciais conquistadas foram obscurecidas pelos problemas posteriores, tanto que, quando ele concorreu à presidência da nova Rússia em 1996, recebeu apenas 0,5% dos votos.

O governo Gorbachev é usualmente lembrado como responsável pelo fim da URSS. Mas o ex-presidente afirma que é socialista, que na verdade lutou pela preservação do regime e que não concorda que a democracia que ele defendia levou ao colapso. É verdade?

Quando Gorbachev diz, no filme, que é “socialista”, utiliza essa palavra em seu sentido mais amplo que inclui o de “social-democrata”. Após o final da URSS, ele abandonou a ideia do comunismo bolchevique e fundou um partido social-democrata para concorrer nas eleições. Ou seja, é partidário de um modelo como o da Suécia, por exemplo, e não de um capitalismo liberal ou autoritário. E, como diz no filme, não pode aceitar a ideia de que ter dado liberdade de escolha aos russos signifique que ele seja responsável pelo fim da União Soviética. Até o fim, ele defendeu a permanência da URSS, em configuração reformulada, com maiores poderes para suas repúblicas constituintes.

Gorbachev é crítico a Boris Yeltsin, a quem chama de “idiota e maluco”. E diz que a Constituição de 1993 foi feita a imagem e semelhança de Yeltsin e que é autocrática. A crítica faz sentido?

Esta é uma discussão espinhosa. Yeltsin certamente teve arroubos autoritários como quando, em 1993, ordenou o canhoneio do parlamento (seu inimigo então) e conduziu, de cima, a proclamação da nova constituição. Por outro lado, bem ou mal (fora o episódio de 1993), Yeltsin manteve uma democracia política no país ao longo dos anos 1990. A raiva de Gorbachev contra Yeltsin tem muito a ver com o fato de terem sido dois líderes com projetos diferentes para o país, que estiveram em rota de colisão em vários momentos. Gorbachev “despediu” Yeltsin durante a perestroika, e Yeltsin “despachou” e humilhou Gorbachev após a tentativa de golpe em agosto de 1991.

Em algumas cenas do filme, Vladimir Putin aparece numa TV ligada ao fundo. Mas o ex-presidente evita fazer críticas diretas ao atual, até foge do tema quando Mansky diz que só houve democracia na Rússia na era Gorbachev e no início do governo Yeltsin. Gorbachev, contudo, deixa no ar um descontentamento. Ideologicamente, o quão distantes são Gorbachev e Putin?

Gorbachev apoiou Putin no início de seu mandato, pois acreditava que ele corrigiria os excessos do liberalismo econômico (falta de preocupação com o social) de Yeltsin. Entretanto, à medida que Putin se tornava mais autoritário, Gorbachev foi se afastando dele e o criticando. A imagem de Putin frequentemente “ao fundo” durante o filme foi um recurso do diretor para chamar a atenção para o dilema da Rússia atual: para onde irá a liberdade política que Gorbachev quis trazer aos russos lá atrás?

O filme lembra que, quando renunciou, a única posse de Gorbachev era um apartamento em Moscou. Hoje ele vive numa mansão com vários empregados, tem uma fundação com prédio próprio e diz tirar seus rendimentos de palestras. É uma exceção ou o fim do regime foi generoso com os antigos líderes socialistas?

Não posso deixar de começar a resposta com uma tirada de humor satírico. A realidade gerontocrática da liderança soviética antes de Gorbachev fez com que não surgisse o problema de compararmos o seu destino com o dos líderes soviéticos anteriores a ele: morreram no cargo! É verdade que Gorbachev só tinha um apartamento em suas posses quando a URSS acabou, mas ele fez negociações com Yeltsin para que, depois que deixasse de ser presidente, recebesse uma pensão vitalícia e um prédio para iniciar a (futura) instituição. Esta é a origem da atual Fundação Gorbachev.

Serviço

Documentário “Gorbachev. Céu”

Onde: Site do festival  “É Tudo Verdade.” (www.etudoverdade.com.br)

Quando: Dia 11/4, às 19h.

Classificação: Livre