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‘Meus filmes são políticos, não partidários’, diz Silvio Tendler

Diretor de longas como ‘Os anos JK’ e ‘Jango’, cineasta lança nesta quinta ‘Dedo na ferida’, um retrato do sistema financeiro mundial
Silvio Tendler posa com relíquia do cinema em sua casa, em Copacabana Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo
Silvio Tendler posa com relíquia do cinema em sua casa, em Copacabana Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo

RIO — Aos 68 anos, e celebrando cinco décadas de cinema, Silvio Tendler faz uma constatação: foi o golpe militar — que o pegou “em pleno voo da adolescência” e da resistência, aos 14 — que lhe despertou o desejo de fazer audiovisual. A mesma ditadura fez sua carreira começar de modo doloroso. E emblemático. Seu primeiro filme, um depoimento do marinheiro João Cândido em 1968, 58 anos após a Revolta da Chibata, virou cinzas, queimado na fogueira da censura.

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Silvio morou no Chile de Salvador Allende, estudou Cinema e História em Paris, e retornou ao Brasil em 1976, para continuar voltando suas lentes para personagens políticos, como Juscelino Kubitschek (“Os anos JK”, 1980) e João Goulart (“Jango”, 1984), e questões sociais. Agora, em “Dedo na ferida”, faz forte crítica à financeirização da economia. Não só no Brasil. Entre os entrevistados, estão o economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr., o cineasta greco-francês Costa-Gavras e o ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis. O longa, que estreia nesta quinta, foi o documentário favorito do público no Festival do Rio em 2017.

Para esse “judeu humanista”, como se define, os filmes partem de dúvidas sobre o objeto de seu desejo.

— Faço filmes para aprender. Quando quero conhecer um tema, digo: vou filmar.

Irrequieto, mesmo numa cadeira de rodas por causa de um problema na medula, Silvio já tem dois outros longas saindo do forno: um sobre o poeta Ferreira Gullar e outro baseado no livro “A alma imoral”, do rabino Nilton Bonder, seu parceiro na empreitada. E já começa a preparar um terceiro, sobre a sexualidade nos anos 50 e 60 a partir dos quadrinhos eróticos de Carlos Zéfiro.

Em 1968, quando fez o filme sobre João Cândido, você era envolvido com o movimento estudantil?

Tinha 18 anos e fui eleito presidente da Federação dos Cineclubes do Rio. Havia uma simbiose com o movimento estudantil. O cineclube servia como fachada para a gente fazer política.

Por que tiveram de queimar os negativos do filme?

A queima do material foi em 1969. Um amigo resolveu fazer a gracinha de sequestrar o primeiro avião brasileiro para Cuba. Uma semana depois, estávamos todos com a polícia dentro de casa.

Foi aí que você se mudou para o Chile?

Tive que sumir. Um ano depois, minha mãe foi presa e humilhada no DOI-Codi. Eu fui para o Chile em 1970 e de lá mandei uma carta para ela, por uma senhora de sociedade, mas essa carta foi interceptada. Eu pedia que minha mãe mandasse a minha máquina de escrever e eles entenderam que era mensagem cifrada, que era uma metralhadora. Invadiram um apartamento em Copacabana de classe média para buscar uma metralhadora. Levaram minha mãe, puseram um capuz nela. Ela pediu para ir ao banheiro, e a levaram ao alojamento dos soldados, encapuzada, “mija aí”. Um horror. Inacreditável que alguém ainda possa ter saudade disso aí. Não me falem de ditadura, pelo amor de Deus, porque eu conheço.

“Não quero bater em um governo e sim discutir a questão da financeirização, que aumenta desigualdades”

Silvio Tendler
Documentarista

“Dedo na ferida” trata de questões complexas da economia mundial. Por que você quis abordar isso? E como traduzir para o público?

Eu achava que o que estava destruindo a economia brasileira era o sistema financeiro. É o país que, de longe, pratica as taxas de juros mais absurdas do planeta. Nenhum país do mundo pega 50% da sua economia e dedica para pagar a dívida de bancos, isso é um absurdo. Fui descobrindo que isso é um fenômeno planetário. E tenho sempre a preocupação de dialogar com o espectador. Sou de uma geração muito influenciada pelo Godard e pelas revoluções estéticas. Mas acho que cinema é arte de massas e você tem que se comunicar. Neste filme, usei desenhos, gráficos. Uma das questões mais complicadas e dolorosas do filme é você perceber que uma empresa hoje ganha muito mais no sistema financeiro do que na produção. A maior parte da renda dela vai para a aplicação financeira, não para a produção. E o que gera emprego e consumo é a produção. Paulo Nogueira Batista Jr. fala isso no filme: “Como você quer ter consumidores se não tem empregados?”.

Você continua militante...

Meus filmes são políticos, mas não partidários. Acho que a arte não tem calendário eleitoral. Ela é autônoma, existe por si mesma. Por mais político que seja o filme, ele tem que seguir um calendário próprio. Fui ver outro dia “O Rei da Vela”, do Zé Celso, e está superatual.

Em seu novo documentário, sentiu a necessidade de tratar de alguma forma da crise do atual governo?

Não, com o “Dedo na ferida" eu não quero bater em um governo. Quero discutir a questão da financeirização, que está destruindo a economia e aumentando as desigualdades no mundo. Não sou um cavaleiro solitário e não é uma causa perdida. Tenho certeza de que esse filme vai influenciar as pessoas, elas vão discutir a questão do mercado financeiro e o mundo vai mudar.

Você está terminando um filme sobre Ferreira Gullar?

Sim. “Ferreira Gullar, a arqueologia do poeta”. Isso é para as pessoas verem que preconceito em arte não existe. Adoro Ferreira Gullar como poeta, mas politicamente discordava dele.

O filme baseado em “A alma imoral” está pronto?

No livro, o Nilton (Bonder) diz que o que dá sabor à vida são as transgressões da alma. Então ele defende as imoralidades da alma como coisas que mudam o mundo. Resolvi fazer o filme sobre isso. Está pronto e vamos lançar ainda este ano. Foi uma viagem muito interessante de um rabino com um judeu humanista. Não sou ateu, porque acredito em Deus. Mas não acredito em religião. Acho que religião é coisa dos homens. Fomos para os EUA, começamos pelo guru do Nilton, o rabino Zalman, que, em 1968, tomou LSD e descobriu nos lisérgicos o que não via na religião. Fomos numa sinagoga gay em São Francisco, entrevistamos uma rabina lésbica. Filmamos em NY um rabino conservador que é homossexual, casado com um ator. Entrevistamos um rabino comunista, em Berkley. Filmamos em Israel um professor de religião, pai de cinco filhos, que nos anos 90 descobriu que queria ser mulher. Ele fez cirurgia pra mudança de sexo. Também fomos para o lado politico. Entrevistamos oficiais do exército israelense que são contra a guerra e se aliaram a palestinos.

Você diz que Zéfiro será o primeiro filme de uma trilogia autobiográfica. Já pensa no segundo?

Sim. “Nas asas da PanAm” será completamente autobiográfico. Nos anos 90, fiquei sem pai nem mãe com o fim da União Soviética. Um dia, entro em uma agência de viagens e vejo um cartaz na parede, com a imagem de uma igrejinha secular russa. Embaixo, estava escrito: “Vá à URSS pela PanAm”. A URSS e a PanAm acabaram antes de terminar o século. Só sobramos eu e a igreja. Estou restaurando mais de 20 mil fotografias para contar minha história.