Ana Paula Lisboa
PUBLICIDADE
Ana Paula Lisboa 

Escritora, jornalista e apresentadora.

Informações da coluna

Ana Paula Lisboa 

Foram precisos vários exercícios de respiração, um fim de tarde bonito em Luanda e Bob Marley cantando “Three little birds” para que conseguisse escrever. Mesmo depois de abrir o documento em branco e antes de escrever a primeira palavra, ainda me perguntei: quer mesmo escrever?

— Eu quero.

Eu sabia que escreveria desde janeiro. Em Maputo, calhou de reassistir ao filme “Opaió” e chorar na cena em que Dona Joana recebe a notícia do assassinato dos filhos, mortos por um policial. Em todos esses anos, nunca havia prestado bem atenção ao poema “O caso dos dez negrinhos”, de Bráulio Tavares:

“Dez negrinhos numa cela,

Um deles não mais se move.

Fugiram de manhã cedo

Mas eram nove”

O desespero de Dona Joana me lembrou que dali a pouco, em 12 de fevereiro, meu irmão faria 29 anos. Meu irmão fez 29 anos, porque a minha memória o mantém vivo e celebrando aniversários. No caso da minha família, celebramos a vida e a morte, já que ele foi assassinado no mesmo dia, há dez anos.

Desisti de escrever porque, há alguns anos, eu entendi que a escrita não é mais o melhor lugar para falar do meu irmão. Retomei, quando descobri que outro jovem de favela também foi morto por um policial aos 19 anos, em 2014: Johnatha de Oliveira Lima. Esta semana iniciou finalmente o julgamento de seu assassino e isso, sim, é algo sobre o que quero escrever.

Uma das táticas para garantir que uma pessoa continue morrendo a cada oito horas e 24 minutos em decorrência de intervenção policial é a criminalização dos jovens negros e da pobreza. Faz com que todos acreditem que, se uma pessoa favelada morre, era só mais um e, com certeza, não foi à toa. No Brasil, a cada cem pessoas mortas pela polícia em 2022, 65 eram negras, segundo a Rede de Observatórios da Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec).

Outra tática é tentar nos vencer pelo cansaço, pela sensação de injustiça, pela tristeza. Muitas vezes as famílias vítimas da violência não têm dinheiro nem para enterrar seus filhos, que dirá para acompanhar um processo longo. Mesmo em casos de grande repercussão, como o de Marielle Franco, vemos a morosidade nas investigações e as lacunas deixadas pela polícia. Imagine o que pensa uma família pobre e sem visibilidade.

Ana Paula Oliveira foi contra tudo isso para provar que seu filho não podia morrer. Contra os depoimentos do policial que primeiro dizia que não estava no local, e depois confessou, mas fez questão de acusar Johnatha. Ana Paula foi contra as manchetes dos jornais que no mesmo dia já contavam a história de confronto com bandidos, enquanto ela contava que seu filho foi morto com um tiro nas costas, quando voltava da casa da avó.

Eu a admiro tanto e sinto tanto que Ana seja uma das poucas mães, esposas, namoradas, irmãs ou filhas que conseguem levar o assassino do seu ente querido a julgamento. Escrevo enquanto isso acontece e torço para que este julgamento não seja um caso isolado. Eu espero com toda a minha alma que eu possa abraçar a minha xará e ela não precise mais estar usando uma camiseta pedindo justiça.

Mais recente Próxima A possibilidade de ir para o Japão