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Cultura

Luana Carvalho: ‘Se minha mãe fosse viva, estaria asfixiada pelo Brasil atual’

Filha de Beth Carvalho lança disco dedicado à cantora enquanto digitaliza a obra da sambista: ‘Minha maneira de dividir a saudade’
Luana Carvalho Foto: Divulgação / Ana Alexandrino
Luana Carvalho Foto: Divulgação / Ana Alexandrino

Luana Carvalho gravava um disco com composições próprias quando a pandemia de coronavírus tomou conta do mundo. Junto com a marcha devastadora da doença, aproximava-se também a data de um ano da morte de sua mãe, a cantora Beth Carvalho (1946-2019). Aos 39 anos, Luana sentiu a necessidade de parar tudo o que estava fazendo para homenageá-la.

— Às vezes, você só quer sentar e chorar, mas herdar um legado traz responsabilidades — diz ela, que pretende lançar o projeto autoral até o fim do ano.

Luana Carvalho lança disco em homenagem à mãe Foto: Ana Alexandrino
Luana Carvalho lança disco em homenagem à mãe Foto: Ana Alexandrino

Luana começou as homenagens com uma live na data que marcou um ano do velório da mãe, em 1º de maio. Lançou também uma playlist no Spotify com suas canções preferidas do vasto repertório gravado pela sambista. Percebeu, então, algo em comum entre as músicas que escolheu: todas falavam de carnaval. Por isso, ela, que nasceu em um sábado de folia, batizou a lista de “Quarentena de cinzas”. O que acabou provocando uma reflexão sobre o paralelo entre a intensa reunião de corpos nas ruas e o isolamento total provocado pela pandemia.

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— Existem semelhanças nos estados carnavalesco e quarentenado. São duas sublimações. Uma em liberdade, a outra, em condição de cárcere — compara. — Uma, ode à alegria; o outra, uma situação emergencial, socioeconômica, política, uma tentativa de retenção do número de óbitos de uma população. Ambos uma questão de sobrevivência e contágio.

O mergulho na obra da mãe foi profundo,e Luana, já mexida, ainda viveu todo o processo durante convivência intensa com a filha Mia, de 2 anos, na quarentena.

— Passei semanas colocando as músicas que minha mãe gravou para tocar e vivendo o fato de ver a minha filha ouvindo a obra da avó — emociona-se. — Elas tiveram apenas um ano de convivência e foi muito forte.

Do mergulho, Luana emergiu com vontade de fazer algo maior. Chamou o os amigos — o produtor Kassin e o músico VovôBebê (violão, guitarra, coro e gravação de vozes) — e pariu o disco “Baile de máscara” (a capa está no detalhe acima). O álbum, que ela lança amanhã com distribuição digital pela Altafonte, foi gravado em duas semanas, remotamente (“Kassin e VovôBebê moraram comigo de longe”, brinca”).

capa do disco Baile de Máscara Foto: reprodução
capa do disco Baile de Máscara Foto: reprodução

São seis músicas, todas regravações de Beth. Entre elas, estão “Minha festa” (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito), “Carnaval”(Carlos Elias/Nelson Lins de Barros), “Falso reinado” (Adilson Bispo/J. Roberto) e “Dia Seguinte” (J. Petrolino/Carlinhos Vergueiro). “Visual” (Neném/Pintado), a quarta canção do disco, une as três mulheres da família, já que Beth e Mia participam da gravação (como? é surpresa).

Mas é “Meu escudo” (Décio Carvalho e Noca da Portela), que abre o álbum, a responsável por resumir o que significa para Luana lançar um disco neste momento do Brasil: “Para suportar um mundo de desilusão / Vou usando como escudo o meu coração”, diz um verso da letra.

—O que eu tenho para oferecer em troca de todo esse descaso que acontece no país é o meu coração — afirma. — Quando ele sai do corpo em forma de canção, sinto que fiz minha parte. Se for para sangrar, agora vai sangrar fora.

O desgosto com atual situação política e de saúde pública do país seria compartilhado por sua mãe, se ela ainda estivesse aqui, segundo Luana.

— Se minha mãe fosse viva durante a Covid, talvez fosse morrer asfixiada com o Brasil atual— diz Luana, que perdeu o pai, o ex-jogador de futebol Edson Cegonha, em 2015. — É difícil perder o escudo cronológico. Agora, sou a primeira, na ordem, a morrer. Parece mórbido, mas é a vida. Não tenho mais uma casa incondicional para ir, me esconder ou me cuidar.

O luto

Após um ano de luto intenso (“paira um torpor no início, era como se eu estivesse flutuando”), ela conta que agora consegue pisar em terra firme. Apesar de ainda ter momentos de vazio profundo. Quando Beth partiu, a filha tinha acabado de alugar uma casa grande na Gávea para morar com a mãe. Não deu tempo, a cantora morreu antes. E Luana, desde então, convive com essa ausência.

— Mas ela está lá, sinto o tempo todo. E sinto uma saudade misturada com a confiança de que ela soube o que fazer até o fim — afirma. — O disco é a minha maneira de dividir essa saudade, de aproximar o que ela fez do que eu faço.

Se a música é um elo entre as duas, agora Luana tem conseguido dar mais atenção ao legado da mãe, tocar projetos que antes não tinha cabeça para pensar. Como a catalogação e a digitalização da obra da cantora. Luana quer disponibilizar tudo nas plataformas digitais, mas ainda precisa proteger o acervo legalmente. No baú de Beth ( que deixou grande acervo de inéditas , além de 600 fitas cassete com músicas que compositores enviaram a ela), Luana ainda não mexeu.

— Participei muito da seleção dessas canções. Minha mãe era rígida, não dava mesada, mas um trabalho para eu ganhar o dinheiro. Dizia: “Cataloga os CDs da casa que eu te dou uma grana, lê o jornal inteiro que te pago” — lembra. — Mas essas músicas foram dadas para ela, existe uma delicadeza nessa relação. Se ela não quis botar no mundo, será que eu vou botar?

Luana conta que as gravações chegavam de tudo quanto é jeito. Muitas vezes, eram tão precárias que Luana precisava ligar para o autor e saber se a nota era mesmo aquela que Beth intuía.

A situação atual de compositores e trabalhadores da cultura é algo que comove a filha de Beth Carvalho, cantora que jogou luz sobre tantos autores brasileiros. A começar pela de Nelson Sargento. Aos 96 anos, um dos maiores sambistas do Brasil enfrenta, assim como muitos artistas na pandemia, uma difícil crise financeira. A família chegou a organizar uma vaquinha virtual.

— Chorei muito quando vi a notícia do Nelson. Saber que isso está acontecendo com uma das pessoas vivas mais importantes para a nossa cultura... Chorei do mesmo jeito quando vi um amigo, o violonista Luiz Felipe de Lima, vendendo o seu instrumento de trabalho — conta. — Ele reverteu a situação, mas não é todo mundo que vai conseguir dar essa virada. Isso é o Brasil. Choro pelo Nelson, por nós, por mim, pelo Brasil inteiro. O que vai ser? Essa é a grande pergunta.