Exclusivo para Assinantes
Cultura

Em 'Navio pirata', BaianaSystem busca elo com a África sem filtro da cultura norte-americana

Álbum que chega nesta sexta-feira é a primeira parte de 'OxeAxeExu', disco triplo cujo segundo e terceiro atos serão lançados em março
Russo Passapusso e BNegão nas filmagens do clipe 'Reza forte', do BaianaSystem, na ilha de Itaparica Foto: Divulgação/Filipe Cartaxo
Russo Passapusso e BNegão nas filmagens do clipe 'Reza forte', do BaianaSystem, na ilha de Itaparica Foto: Divulgação/Filipe Cartaxo

Quase num sistema de retroalimentação, o BaianaSystem usava o calor do palco — em festivais como Rock in Rio ou arrastando multidões no carnaval de Salvador — como um laboratório de experimentações, timbres e versos. Como manda a cultura soundsystem jamaicana, uma das garrafas com a qual hidratam a criatividade, um show nunca era igual ao outro. Até que veio o choque térmico do distanciamento imposto pela pandemia.

Sem o palco para testar caminhos para o novo álbum, o grupo olhou para dentro, numa pesquisa por preciosidades da música brasileira, e para fora, por janelas virtuais através das quais encontrou na Tanzânia paralelos culturais e geográficos com Salvador. Assim foi a construção de “OxeAxeExu”, dividido em três partes. A primeira, "Navio Pirata”, será lançada nesta sexta-feira — as outros duas, “Recital instrumental” e América do Sol”, em 5 e 26 de março, respectivamente.

— Queríamos construir um elo com a África sem passar pelas referências que vêm da cultura norte-americana, uma África imaginária que chega pra gente com vários filtros. — diz o guitarrista e compositor Roberto Barreto. — Essa África árabe, às vezes esquecemos que existe, e é muito rica, tem influência judaica.

Opinião: BaianaSystem é um dos maiores acontecimentos da música brasileira recente

Shows explosivos

Ilustração conceitual do Navio Pirata, do Baiana System Foto: Divulgação/Cristiano Rafael
Ilustração conceitual do Navio Pirata, do Baiana System Foto: Divulgação/Cristiano Rafael

Em vídeos na internet, a banda percebeu a explosão dos shows no país do leste africano, o impacto causado no público — sensação que eles conhecem dos vídeos de shows do BaianaSystem que vão parar no YouTube depois de todo carnaval.

— Chamaram nossa atenção os beats rápidos, as rimas aceleradas. Esse novo mundo trouxe a sensação de inquietude em meio a paradeira da pandemia — completa Barreto.

Pela internet, o grupo conheceu o agitador cultural Abbas Jazza, o cantor Makaveli e o DJ e produtor Jay Mita. Representantes de um movimento conhecido como singeli music, eles produzem nas ruas de Dar es Salaam impacto parecido com o do BaianaSystem em Salvador (e no Rio, em São Paulo...), unindo sons orgânicos e eletrônicos, tradição e modernidade. Makaveli e Jay Mita participam diretamente da faixa “Nauliza”, que traz rimas em suaíli, a língua local, mas inspiram também todo o trabalho.

Samba-rock e axé

No lado de cá, a pesquisa em vinis trouxe preciosidades como o samba-rock “Anticonvencional”, de Cyro Aguiar; o clássico lado B do axé “Buzu”, da Banda Fuzuê; e “Cantata pra Alagamar”, espécie de hino do enfrentamento não violento. Composta pelo maestro Alberto Kaplan e pelo escritor W.J Solha, a canção tem origem na luta de agricultores paraibanos expulsos de sua terra na década de 1970. Sampleados, esses trechos serviram como ponto de partida para canções como “Reza forte” (parceria com o carioca BNegão), “Catraca” e “Monopólio”.

É como se a bordo do Navio Pirata, agora numa viagem virtual, o BaianaSystem e o produtor Daniel Ganjaman partissem da África Oriental (neste primeiro ato), navegando por mares diversos (“Recital instrumental”) e aportasse na América Latina (“América do Sol”) em movimentos cíclicos, j�� que cada ato traz elementos dos outros dois. No trajeto, esbarram em ritmos que não tinham explorado ainda, como o rastafári nayambing (“O que não me destrói me fortalece”, com participação da cantora Céu) e o britânico jungle (na pesada “Monopólio”).

Sincretismo religioso

Capa de 'Navio Pirata' Foto: Divulgação/Pepe Schettino
Capa de 'Navio Pirata' Foto: Divulgação/Pepe Schettino

Outro norte temático que guia a excursão sonora está no sincretismo religioso, por elementos de fé e da reza. Ela surge, claro, em “Reza forte”, com seu refrão de “folha de arruda, pé de coelho e sal grosso” (elementos de origem vegetal, animal e mineral, explica Passapusso). E também em “Raminho”, faixa que parte de uma prece de Dona Ritinha, rezadeira do sertão da Paraíba, retirada do documentário “O ramo”, de Breno César, para servir como uma travessia tranquila para mares mais agitados que o “Navio Pirata” vem explorar.

— Trazemos elementos da reza do índio, a ancestralidade africana... Nossa religião é a música, quem prega pra gente são os discos que ouvimos e que e nos impactam — diz Passapusso.

Ainda em 2021, ele  lançará seu segundo disco fora da banda, numa parceria com seus ídolos Antônio Carlos e Jocáfi. No BaianaSystem, ele mantém os mesmo elementos já conhecidos pelos fãs, mas o isolamento trouxe a eletrônica mais para frente.

— A gente usa as mesmas ferramentas, a palavra, a guitarra baiana. Mas gravar à distância, sozinhos em casa, nos provocou e nos levou a um disco mais eletrônico. Não tínhamos mais uma orquestra com a gente, como em “O futuro não demora”, só as máquinas e os discos de vinil — explica.

Um dos poucos grupos de relevância nacional a não fazer lives, o BaianaSystem espera a vacina para poder testar o caminho inverso do que está acostumado a traçar: levar um disco de estúdio para o palco.

— Até pelo nosso perfil de show, temos outro entendimento da coisa da live. Se fôssemos fazer, teríamos que testar cem pessoas, botar todas elas numa casa de show, fechar e filmar. Enquanto isso, trabalhamos em tempo real nos próximos atos do disco, sentindo e entendendo nosso tempo — reflete Passapusso.