SOS Rio Grande do Sul
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Por — Rio de Janeiro

RESUMO

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GERADO EM: 28/06/2024 - 04:30

Busca por desaparecidos no RS após chuvas

Famílias buscam por 33 desaparecidos após chuvas no RS. Catástrofe deixou 179 mortos e muitos desaparecidos. Bombeiros seguem buscas subaquáticas. Direitos das famílias em casos de morte presumida são explicados. Maioria dos desaparecidos foi encontrada com vida.

"É uma ansiedade enorme, uma dor inacreditável", desabafa Adriano Brino, de 45 anos. Por volta das 15h30 do dia 30 de abril, já no ápice das chuvas históricas que levaram mortes e destruição ao Rio Grande do Sul, um deslizamento de terra percorreu cerca de um quilômetro encosta abaixo até atingir em cheio a propriedade de sua família, em Roca Sales, município do Vale do Taquari. Pai e mãe idosos, irmão, cunhada e duas sobrinhas, de 9 e 20 anos, foram vitimados pela tragédia. Hoje, três dos seis corpos seguem desaparecidos, o que só mantém a angústia dos parentes.

Passados dois meses do início dos temporais, ainda há 33 desaparecidos em 17 municípios gaúchos, de acordo com a Defesa Civil gaúcha. A lista chegou à marca de 140 pessoas no décimo dia de chuvas, o ápice da marca. A grande maioria sumiu ainda nas primeiras e mais intensas 72h da chuva, entre 29 de abril e 1º de maio. A essa altura, boa parte dessas famílias já não acredita mais que irá conseguir encontrar seus parentes com vida, mas se apega à esperança de poder descobrir o que aconteceu com eles e à possibilidade de um desfecho para a tragédia.

— A ficha não cai — resume Adriano. — Todos os dias procuro ler as reportagens, na esperança de que tenham achado mais alguém, para que a gente possa se de despedir pelo menos, saber onde eles estão.

Até agora, foram achados os corpos de Dorly Brino, de 57 anos, irmão de Adriano, e de duas filhas de Dorly: Gabriela Brino, de 9 anos, e Maria Eduarda Brino, de 20. Eles já foram sepultados. As buscas continuam por Elírio Brino e Erica Brino, de 78 anos, patriarcas da família, e pela esposa de Dorly e mãe das meninas, Janice Brino, de 49 anos.

— Um primo nosso havia acabado de sair de lá e já chovia muito. Foi o tempo de chegar em casa, ali perto, e ele conta que ouviu um estouro, como se um avião tivesse caído. Quando viu, o deslizamento já tinha levado a casa , havia muita terra, uma nuvem de fumaça. Pegou toda a granja da família e foi descendo tudo. Mais de 500 suínos morreram, o gado foi todo arrastado para o rio... Só restou um boi. Meu pai nasceu ali, antes era casa do meu avô, e nós nunca vimos nada parecido com isso.

O casal Elírio e Érica Brino, de 78 anos: os dois continuam desaparecidos. A pequena Gabriela, de 9, foi achada sem vida — Foto: Arquivo pessoal
O casal Elírio e Érica Brino, de 78 anos: os dois continuam desaparecidos. A pequena Gabriela, de 9, foi achada sem vida — Foto: Arquivo pessoal

'Sem esperança de achar com vida'

Cecília Marques Pianezzola, de 54 anos, também lamenta não ter conseguido se despedir até hoje da irmã, Bernardete Marques da Silva, de 48 anos, e do cunhado, César Gilmar das Chagas, de 57. Ambos estavam em casa, no bairro Jacarezinho, em Encantado, naquela mesma tarde de 30 de abril, por volta das 17h, quando houve um deslizamento de terra e uma rocha gigantesca acabou destruindo o imóvel.

— Naquela tarde, ele tinha gravado um vídeo, mostrando a intensidade da chuva. Daí eu não quis acreditar que eles tinham sido vítimas dessa tragédia... A cidade ficou 15 dias sem luz, sem internet, sem telefone, sem acesso, e achamos que eles tivessem conseguido sair, mas que não estavam conseguindo se comunicar. Conforme os dias foram passando, a energia e o sinal foram voltando, eles não apareciam. Fomos aos abrigos, também, e não achamos mais. Aí, não tive mais esperança — narra Cecília.

O casal, que estava junto há 24 anos, havia se mudado há apenas dois para a casa em Encantado. Dividiam o amor pelo Grêmio. Bernardete tem uma filha de 22 anos e trabalha num restaurante.

— Você passar em frente ao terreno, saber que sua irmã e seu cunhado passaram por essa tragédia, e não achar os corpos... É muito dolorido. É a coisa mais triste do mundo, uma ferida que não cicatriza. Você vai lá, procura, não vê o corpo, se desespera. Meu Deus do céu... Só quem perde um familiar sabe a dor que carrega — vaticina Cecília.

Buscas continuam por casal que desapareceu em Encantado: pedra destruiu a casa — Foto: Imagem cedida pela família
Buscas continuam por casal que desapareceu em Encantado: pedra destruiu a casa — Foto: Imagem cedida pela família

Buscas se concentram na Serra e Vale do Taquari

Um dos municípios que concentra a maior parte dos 33 desaparecidos é Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari: cinco pessoas. Entre elas, está Fabrício Adriano Wandt, de 49 anos. No dia 2 de maio, com a força da chuva e a elevação da água, ele teria tentado escapar às pressas de casa com a filha Manuella, de 6 anos, nas costas. Ambos teriam sido arrastados pela correnteza. O corpo da menina foi achado, mas o do pai, não. "Estou em desespero", escreveu a filha mais velha, Maria Wendt, nas redes sociais.

Em Lajeado, também no Vale do Taquari, também são cinco pessoas que continuam desaparecidas. Por lá, uma família inteira sumiu depois que um deslizamento atingiu a propriedade onde criavam cavalos. Desde o dia 1º de maio, os bombeiros procuram pelos corpos de Orlando da Silva, de 77 anos, sua esposa, Gladis Elisabeth da Silva, de 66 anos, conhecida como Dinha, e de dois de seus filhos, a veterinária de cavalos Josiani Carolini da Silva, de 33 anos, e Alexander Junior da Silva, de 43.

A terceira cidade com mais desaparecimentos que perduram até agora é Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha: quatro pessoas. Pelo menos três delas seriam da mesma família: Nelsa Faccin Gallon, de 86 anos, Isabel Velere Antonello Gallon, de 69, e Carine Milani, de 39. Todas teriam sido vítimas de um deslizamento.

Da lista, o mais jovem é Carlos Eduardo Lassakoski dos Santos, de 22 anos, de São Leopoldo, conhecido entre parentes e amigos como Dudu Alemãozinho. Ele foi dado como desaparecido em 2 de maio. "Sou uma mãe desesperada que implora por notícias do seu filho", clamou nas redes sociais Daia Lassakoski. Já William da Silva Ramos, de 27 anos, morador de Agudo, desapareceu no dia 29. "Já não tenho mais lágrimas para chorar, meu coração está faltando um pedaço, só Deus sabe quanta dor e sofrimento, mas eu creio num Deus e nós vamos nos reencontrar", desabafou Romilda Silva, mãe do rapaz, também em seu perfil na internet.

A catástrofe provocou, até agora, 179 mortes confirmadas no estado. Entre essas vítimas, há seis corpos que ainda não foram identificados: em Arroio do Meio, Canoas, Roca Sales, Taquari, Teutônia e Venâncio Aires.

'É como se estivéssemos vivendo o mesmo dia desde o início'

Emerson Soares Ribeiro, capitão do Corpo de Bombeiros gaúcho, não esconde o inevitável desgaste emocional com os trabalhos de busca que ainda perduram.

— Para nós, é como se estivéssemos vivendo o mesmo dia, desde o início da tragédia — afirma Ribeiro. — Nós temos um preparo desde a nossa formação para passarmos por esse tipo de situação, para sermos esse nó no fim da corda. Mas, com certeza, eventos dessa magnitude exigem o máximo em todos os sentidos. Nos envolvemos por completo. Temos mais de 100 bombeiros que tiveram suas casas atingidas pelas chuvas, mas seguimos respondendo à tragédia.

Ele conta que os militares devem começar a realizar buscas subaquáticas em breve, quando o tempo enfim estabilizar de vez:

— Estamos já com longos dias de operação, e a dinâmica evoluiu com o passar do tempo. Hoje essa busca tem sido feita com drones, no mapeamento de grandes áreas antes alagadas e que agora já apresentam condições melhores, operações embarcadas, buscas em margens de rios, trabalho com cães, tudo com auxílio de equipes de outros estados. Num próximo momento, a partir da normalização da calha dos rios, vamos investir na busca subaquática, e já temos alguns pontos de interesse mapeados.

O capitão dos bombeiros explica que, até poucos dias atrás, as equipes de buscas ainda vinham encontrado desaparecidos que haviam se separado de suas famílias e estavam em abrigos de Porto Alegre e da Região Metropolitana, tentativa de localização que segue acontecendo. Mas, no interior do estado e, sobretudo, no Vale do Taquari, o prognóstico não é positivo.

— Infelizmente, nessas regiões já há algum tempo a gente vem investindo pela busca dos corpos. Nas últimas semanas, nossas equipes recuperaram quatro dessas vítimas. É bem remota a chance dessas vítimas serem encontradas com vida hoje — acrescentou.

Maioria achada com vida

O GLOBO teve acesso a dados da Polícia Civil que mostram que, desde o início da catástrofe climática, as delegacias gaúchas registraram 452 desaparecimentos. Em 260 desses casos — ou 57% —, as pessoas foram achadas com vida e devolvidas às suas famílias. O diretor da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegado Mário Souza, conta que, no início das enchentes, a demanda diária de registro de desaparecidos aumentou pelo menos dez vezes. Foi preciso reforçar as equipes mobilizadas e disponibilizar o 0800-642-0121, número gratuito para ocorrências e que permanece ativo.

— Hoje, voltamos à normalidade na demanda diária de desaparecidos, mas mantivemos a equipe quadruplicada mesmo assim para focar naqueles que aos poucos forem sendo encontrados. Infelizmente, quanto mais o tempo passa, maior a probabilidade que sejam pessoas que estejam em óbito. Mas não desistimos, todas as investigações estão abertas até que haja um desfecho. Hoje, já escuto muito as pessoas dizendo que só querem enterrar os seus entes queridos.

Em meio a tantas dores, o fato de que mais da metade dos desparecidos foi localizado com vida vira um sopro de esperança.

— A maior parte das pessoas desapareceu durante o trânsito de resgate: pessoas sem celular, em estado de choque, perdidas. A maior parte encontramos no "corpo a corpo", diligências nas ruas, aquela investigação clássica em abrigos, hospitais, casas de acolhimento. A maioria foi achada, sim, com vida.

O delegado Christian Nedel, diretor do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis — responsável pelas buscas por crianças e idosos, por exemplo —, também fala sobre o trabalho "incessante" de localização das vítimas, que permitiu reencontros que emocionaram até os agentes envolvidos. Um dos sistemas mais importantes utilizados para localizar essas pessoas surge de uma parceria com a Diretoria de Operações de Inteligência da Secretaria Nacional da Segurança Pública (Senasp), por meio do Ciberlab, tecnologia que permite a busca de vítimas em cooperação com redes sociais e outros mecanismos digitais.

— Desde o início, começamos a trabalhar de forma incessante, não só nos abrigos, mas também com uso de ferramentas de inteligência e análise criminal, com softwers específicos. Conseguimos fazer algumas varreduras com sistema de georreferenciamento na capital, Região Metropolitana e no interior, o que possibilitou o reencontro de algumas famílias, às vezes em cidades diferentes e às vezes no mesmo município.

Ele relembra algumas dessas histórias.

— Houve um caso de uma mãe de dois filhos, que eram maiores de idade, mas moravam juntos. Ela foi achada num abrigo em Gravataí e nós achamos um deles num abrigo em Porto Alegre e outro em Guaíba. Eles se perderam depois que a casa deles desabou com a força da água.

Investigação da polícia gaúcha permitiu reencontro entre mãe que estava em abrigo de Gravataí e filho que estava na capital — Foto: Divulgação / Polícia Civil
Investigação da polícia gaúcha permitiu reencontro entre mãe que estava em abrigo de Gravataí e filho que estava na capital — Foto: Divulgação / Polícia Civil

— Tivemos também um casal de idosos de Novo Hamburgo. Eles se perderam um do outro e nós conseguimos reuni-los. Estavam cada um em um abrigo. Houve ainda o caso de uma mãe e uma filha adolescente que moravam perto da Arena do Grêmio, no Humaitá, e tinham se perdido do avô da menina. Também conseguimos encontrá-lo num abrigo — relembra. — E o trabalho continua sendo feito, mas de uma forma menos intensa, já que os abrigos estão diminuindo, e temos pessoas cada vez mais voltando às suas casas.

'Morte presumida': quais são os direitos das famílias

Em catástrofes de grandes proporções, é comum que parte das vítimas fatais jamais seja encontrada. Na tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais, que matou 270 pessoas, outras três constam oficialmente como desaparecidas até hoje, mesmo cinco anos após o rompimento das barragens da Vale.

O advogado de Direito de Família Leonardo Marcondes explica como funciona o prazo para que as famílias possam reconhecer a chamada morte presumida de seus parentes, caso queiram, para que possam enterrá-los e prosseguir com os demais trâmites.

— As famílias podem solicitar à Justiça a declaração de morte presumida em casos de desaparecimento decorrente de catástrofes, sem a necessidade de esperar o prazo usual. Normalmente, a lei requer um prazo de até dois anos em circunstâncias comuns, ou seis meses em situações de grave risco de vida, como desastres naturais. Uma vez que a morte presumida é declarada por um juiz, os familiares podem realizar um sepultamento simbólico, mesmo sem o corpo — explica Marcondes.

A não localização dos corpos pode afetar até mesmo questões relativas a herança, por exemplo.

— Com a declaração de morte presumida, os direitos à herança são ativados. Essa transmissão de patrimônio, no entanto, pode ser revertida caso o desaparecido seja encontrado vivo ou retorne. A lei prevê que qualquer partilha de bens realizada após a declaração de morte presumida pode ser anulada se houver evidências de que o indivíduo estava vivo após a tragédia — afirma. — Essas medidas são essenciais para fornecer segurança legal e emocional às famílias afetadas por tais tragédias, ajudando-as a começar o processo de luto e encerramento, mesmo sem certezas definitivas sobre o destino de seus entes queridos.

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