Vera Magalhães
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Os principais fatos da política, do Judiciário e da economia.

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Vera Magalhães

Jornalista especializada na cobertura de poder desde 1993. É âncora do "Roda Viva", na TV Cultura, e comentarista na CBN.

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O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), vai designar uma deputada para relatar o Projeto de Lei 1904, que altera o Código Penal para equiparar o aborto em gestações acima de 22 semanas ao crime de homicídio simples. A proposta, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e subscrita por outros 32 deputados das bancadas evangélica e católica, teve a urgência aprovada na quarta-feira, o que significa que está pronta para discussão em plenário, sem passar pelas comissões da Casa.

Para atenuar as criticas ao projeto, Lira tem dito que ele será relatado por uma deputada que não seja nem ligada às bancadas religiosas, favoráveis ao endurecimento da pena para aborto, nem, por parlamentares do PSOL, que ingressou no Supremo Tribunal Federal para rever norma do Conselho Federal de Medicina que tratava do assunto.

O presidente da Casa tem dito a interlocutores que o texto-base do projeto será completamente revisto e que vai realizar debates com especialistas antes da votação em plenário. Mas se era para abrir uma discussão, por que, então, a urgência? Lira atendeu aos clamores das bancadas religiosas, importantes grupos de apoio com os quais contou em suas duas eleições ao comando da Casa, e que pretende manter aglutinadas para a sua sucessão, já deflagrada (ele deve apontar seu candidato em agosto).

Lira tem repetido, diante das severas críticas de juristas, movimentos feministas e outras entidades ligadas aos diretos humanos à proposta, que não se deve basear as análises nos textos-bases, pois eles seriam apenas a referência para chamar a proposta ao plenário. Seu compromisso com os evangélicos e católicos é apenas colocara em pauta, e não com o mérito. Isso significa que a proposta pode ser desidratada e só manter a discussão sobre o procedimento de assistolia fetal.

A assistolia fetal consiste em uma injeção de produtos que induz à parada do batimento do coração do feto antes de ser retirado do útero da mulher. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas.

O tema veio à tona depois que, em 17 de maio, o ministro Alexandre de Moraes, atendendo a uma ação do PSOL, suspendeu uma resolução do CFM regulamentando o procedimento e suspendendo todos os processos administrativos decorrentes dela. A bancada da Bíblia viu a decisão como mais uma investida do Supremo em temas que seriam da alçada do Legislativo, e passou a pressionar Lira nas reuniões de líderes e bancadas temáticas para que pautasse o tema.

Capa do audio - Vera Magalhães - Viva Voz

Diante das críticas, Lira tem dito que muitas deputadas, reservadamente, apoiam a limitação do procedimento, e que a votação da urgência em caráter simbólico, ou seja, sem os nomes, foi para proteger essas parlamentares, e não para tratorar a oposição. Mas essa urgência foi aprovada com uma série de outras matérias da pauta que atende a Lira e a aliados de diversos grupos ligados ao presidente, o que torna a explicação no mínimo insuficiente.

O presidente da Câmara acredita que não há maioria nem para "avançar nem para retroceder" em relação aos casos permitidos para o aborto nem para estabelecer punições a mulheres (inclusive menores de idade e vítimas de estupro) que realizem aborto após 22 semanas. Acontece que o texto, na forma como está redigido e que agora passa a tramitar com urgência, equipara, de fato, o aborto acima desse prazo a homicídio, o que, quando aplicado, pode resultar em penas maiores para as mulheres que para estupradores, por exemplo.

Manifestações contra a proposta estão sendo organizadas por entidades de defesa das mulheres em algumas das principais capitais do país.

Por ora, Lira resiste às pressões para recuar e retirar o projeto de discussão. Mas aliados do presidente da Casa dizem que dificilmente ele vai a votação antes das eleições municipais. Sua urgência atenderia, assim, a uma satisfação dos parlamentares religiosos a suas bases eleitorais para haver discurso na campanha.

Da forma como está, no entanto, o projeto representa um grave risco de retrocesso em uma política pública já pautada excessivamente pelo debate moral e religioso, com ônus gravíssimos para as mulheres, que ficam sob risco real -- afinal, o texto está como está, e não da forma atenuada com que aliados de Lira o justificam -- de se ver criminalizadas em vez de assistidas quando vítimas de violência sexual que resulte numa gravidez indesejada.

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