Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

Informações da coluna

Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por Marcelo Ninio — Pequim

A advogada ucraniana Oleksandra Matviichuk, 39, é diretora do Centro de Liberdades Civis, entidade de defesa dos direitos humanos com sede em Kiev. No ano passado, oito meses após seu país ser invadido pela Rússia, a organização chefiada por ela recebeu o Nobel da Paz, em reconhecimento ao trabalho de documentar crimes de guerra.

Em entrevista ao GLOBO, ela explicou por que divulgou um apelo aos líderes dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que estão reunidos em Johanesburgo para a cúpula anual do grupo. Para a advogada, uma solução negociada para o conflito como defendida pelo Brasil é inviável, porque ninguém mostrou-se capaz de fazer com que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, recue por meio do diálogo.

O que a senhora espera obter com o apelo aos líderes do Brics?

O que espero é que eles assumam sua responsabilidade histórica sobre a situação da Ucrânia. A Rússia começou esta guerra há oito anos, ocupou parte do país, depois estendeu a guerra numa invasão total, cometendo atrocidades terríveis. Se outros países não fazem nada, significa que o sistema internacional de segurança não está funcionando. Eu quis usar essa oportunidade para lembrar aos líderes dos países do Brics sobre essa responsabilidade.

Quando a invasão teve início, a Rússia era a décima-primeira economia do mundo, com uma população bem maior, um Exército poderoso e armas nucleares. Nessas circunstâncias, quem não ajuda a Ucrânia a resistir está ajudando a Rússia a ocupar a Ucrânia. Não é uma questão apenas entre dois países, tem a ver com a paz e a segurança do mundo. Se o sistema internacional de paz e segurança não funciona, significa que, no futuro, poderemos ver outros países usarem a força para mudar fronteiras. É um futuro perigoso para todos, sem exceção.

Como a senhora vê o esforço do Brasil por uma solução política do conflito?

Os ucranianos precisam de paz mais do que ninguém. Mas a Rússia não recua de sua intenção de ocupar a Ucrânia. O problema é que todos aqueles que falam em paz não têm a menor ideia de como mudar a posição russa. Também é importante, quando falamos de paz, que ela seja sustentável, que nos permita viver sem medo.

Quando se fala em diálogo é importante lembrar que ocupação não é paz. Ocupação não é apenas a troca de uma bandeira por outra. Significa negar a identidade da população, desaparecimentos, violência sexual, covas coletivas e a adoção forçada de crianças ucranianas por famílias russas. Portanto, é muito importante não pressionar ninguém a legitimar a violação da ordem internacional. É preciso entender que os ucranianos não estão lutando apenas por território, mas acima de tudo por pessoas, pelas nossas famílias, nossos amigos, nossos vizinhos.

Um cessar-fogo seria benéfico para interromper esse sofrimento?

Nós já passamos por isso. O cessar-fogo foi chamado de Acordo de Minsk, que levou a severas consequências. A Rússia aproveitou esse tempo para construir uma nova base militar em território ucraniano ocupado e se organizar para a invasão de grande escala.

O mundo se esquece do sofrimento do povo ucraniano nos territórios ocupados. Eu sei do que estou falando porque trabalho há oito anos com casos de raptos, torturas, estupros e assassinatos de civis. Nós enviamos inúmeros relatórios a organizações internacionais e governos e ninguém se interessou. Devemos dar boas-vindas a todas as iniciativas pela paz, mas precisamos definir nosso objetivo, que é uma paz sustentável. Não uma pausa temporária para ajudar a Rússia a recuar, se reorganizar e continuar sua guerra genocida.

Como os países do Brics podem ajudar a atingir esse objetivo?

Eles têm muitos instrumentos. O que espero dos líderes nessa cúpula do Brics é que se articulem para que os russos parem com essa guerra de agressão, a ocupação da Ucrânia e a matança. Falando em ações práticas, que adotem as sanções contra a Rússia, que congelem os ativos da Rússia, são instrumentos que não estão sendo usados pelos países do Brics para mostrar que é inaceitável ocupar um país vizinho.

Celso Amorim, que tem sido o principal articulador do Brasil em defesa de uma solução política para o conflito, disse que para uma paz sustentável também é preciso levar em consideração as preocupações de segurança da Rússia. O que acha dessa afirmação?

É preciso voltar às raízes dessa guerra. Ela teve início não em fevereiro de 2022, mas em 2014, quando a Ucrânia não tinha nenhuma perspectiva de entrar para a Otan [aliança militar do Ocidente], mas sim a chance de construir instituições democráticas sustentáveis depois do colapso do regime autoritário.

Milhões de ucranianos levantaram sua voz pacificamente contra um governo autoritário e corrupto, para construir um país em que o direito de todos é protegido. Se olharmos as verdadeiras raízes desse conflito fica muito claro que, quando Putin começou a guerra, em 2014, ele não estava com medo da Otan, mas da ideia de liberdade que chegava perto da fronteira da Rússia. Não é uma guerra entre dois Estados, é uma guerra entre dois sistemas, autoritarismo e democracia.

O presidente Lula foi muito crítico em relação ao países do Ocidente, dizendo que eles fomentam o conflito com armas, mas não busca uma saída. Na sua opinião a única forma de ajudar a Ucrânia é com suprimento militar e sanções contra a Rússia?

Nem o Ocidente, nem o Brasil têm ideia de como fazer o Putin recuar. O plano dele é restaurar o império russo. Por isso precisa continuar avançando, ocupar a Ucrânia e depois outros países.

Não fui eu, mas Putin quem disse que a maior catástrofe do século XX foi o colapso do regime soviético. Ele se vê como o líder que irá restaurar esse império. Não tem a ver com os argumentos russos, mas com ambições históricas.

Essa guerra é muito sangrenta. A Rússia usa crimes de guerra para espalhar o medo. Quando fomos a Bucha [onde a Rússia é acusada de cometer um massacre], vimos covas coletivas, câmaras de tortura e corpos de civis espalhados pelas ruas. O mesmo cenário se repetiu em outras cidades. Essas pessoas estavam desarmadas. Precisamos de armas para nos defender, queremos sobreviver.

Após 18 meses de guerra, como está o país?

Quando a invasão começou, as organizações internacionais evacuaram seu pessoal, mas as pessoas comuns ficaram e começaram a fazer coisas extraordinárias. O espírito de solidariedade é muito forte, mesmo depois de um ano e meio de invasão. Não desejo a nenhuma nação passar por uma guerra, é uma das piores experiências que alguém pode ter. Mas não foi a Ucrânia que escolheu a guerra, foi a Rússia que decidiu invadir.

Esse período dramático revelou o melhor dos ucranianos em ações simples. Mais do que nunca, agora temos consciência do que é ser humano. Sim, estamos passando pelo inferno, mas temos uma chance de liberdade e democracia e estamos lutando por ela.

Sua organização tem documentado crimes de guerra. Qual a escala desses crimes?

Trabalhamos com casos de tortura. Por oito anos esse foi o nosso foco principal e pude constatar a desumanidade cometida em prisões russas. Falei com centenas de pessoas que foram espancadas, estupradas, que tiveram dedos cortados, torturados com choques elétricos, uma mulher me contou como seu olho foi arrancado com uma colher, pessoas foram violentadas e mortas na frente de suas famílias, para aumentar a dor.

Não trabalho com violência sexual e tortura contra crianças, porque isso exige treinamento especial e, para ser franca, eu não consigo, é demais para mim. Mas mesmo se você olhar os relatórios de direitos humanos da ONU, há vítimas de crimes sexuais a partir de quatro anos de idade.

Há relatos de que forças ucranianas também cometeram abusos e crimes de guerra. Sua organização documenta eles?

Claro, nós somos defensores de direitos humanos e documentamos todas as violações, não importa de que lado sejam cometidas. Em nossa base de dados contabilizamos 47 mil episódios de crimes de guerra, a vasta maioria cometida pelos russos.

Mas quando documentamos violações cometidas por forças ucranianas, há uma grande diferença, porque temos instrumentos para influenciar a situação, podemos iniciar um processo criminal, usar a interferência de organizações internacionais, divulgar na mídia. Já quando os russos cometem violações, nós não temos instrumentos, porque a Rússia ignora o direito internacional e deliberadamente usa crimes para vencer essa guerra.

É possível influenciar a opinião pública russa a pressionar o governo de Putin a recuar?

Infelizmente, não acredito que isso seja possível num futuro próximo, porque esta não é só a guerra de Putin, é uma guerra do povo russo. Putin governa o país não apenas com repressão e censura, mas com um contrato social que é baseado na glorificação da Rússia. E o problema é que a maioria dos russos ainda vê a glória em restaurar o império russo e se sente no direito de invadir outros países, matar pessoas e destruir sua identidade. Faz parte da cultura.

A sra. é capaz de enxergar um fim para esta guerra? Acha que em algum momento os responsáveis serão julgados?

Não sabemos se estamos no começo, no meio ou no fim desta guerra. Mas o que sabemos com certeza é que temos que fazer o possível no presente para evitar que esse tipo de guerra se repita no futuro.

Há décadas a Rússia usa a guerra para atingir seus objetivos geopolíticos. E usa crimes de guerra para isso. Eles cometeram crimes terríveis na Chechênia, na Geórgia, no Mali, na Síria e em outros países. E nunca foram punidos. Chegou a um ponto em que passaram a acreditar que podem fazer o que quiserem. Se queremos uma paz duradoura, temos que romper o ciclo de impunidade. Esse é o meu trabalho como advogada de direitos humanos, lutar por justiça para as vítimas dessa guerra. É importante ressaltar: não é só pela Ucrânia, mas para prevenir o próximo ataque russo.

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