Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

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Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por Marcelo Ninio


Cena da agressão a um grupo de mulheres em um restaurante de Tangshan, na província de Hebei, China — Foto: Redes sociais
Cena da agressão a um grupo de mulheres em um restaurante de Tangshan, na província de Hebei, China — Foto: Redes sociais

A brutal agressão a um grupo de mulheres no sábado em um restaurante de Tangshan, na província de Hebei, causou comoção nacional e voltou a chamar a atenção para a violência de gênero na China.Além da vulnerabilidade das mulheres à violência masculina, o incidente revela a ponta de um submundo de gangues que não parecia possível num país onde o controle do Estado é intenso e onipresente. Compartilhadas em massa nas redes sociais, as imagens captadas por câmeras de segurança mostram a agonia das mulheres sendo espancadas por um bando de homens parrudos sob o olhar passivo de outros homens, em mais um episódio de violência desse tipo no país.Embora o movimento feminista na China seja visto com desconfiança pelo Estado, a pressão das ativistas obteve avanços, incluindo a primeira revisão em 20 anos da lei de proteção aos direitos da mulher. Na prática, porém, não é segredo que para muitas chinesas os avanços ainda estão só no papel. Mas, no incidente de Tangshan, ficou exposta uma faceta menos conhecida da sociedade chinesa: a ação de gangues. Os nove homens presos por envolvimento nos ataques são suspeitos de pertencer a uma quadrilha local.

A repercussão do caso deflagrou relatos de vítimas de extorsão, violência, fraude e outros delitos cometidos por máfias da cidade. Deixando de lado o medo, várias foram às redes sociais para contar os abusos sofridos. Num dos mais compartilhados, uma cantora contou num vídeo que foi detida em 23 de maio por uma gangue por mais de 16 horas no bar onde se apresenta. Ela foi agredida e forçada a assinar uma promissória. A cantora escapou e prestou queixa, mas a polícia não foi atrás dos acusados, segundo ela.

Mulher acorrentada

Com o barulho causado pelo ataque no restaurante, a imprensa estatal também deu destaque ao caso, e as autoridades anunciaram uma campanha batizada de “tempestade” para desbaratar as gangues de Tangshan. Ativistas protestaram contra o foco dado à ação das gangues, para elas destinado a desviar a atenção da violência contra as mulheres.Mas nas redes sociais o tema continuou em alta, numa rara exceção feita pela censura, incluindo técnicas de autodefesa para meninas. Entre os exemplos de abuso recentes, um dos que mais chocaram o país ocorreu no início do ano, quando o vídeo de uma mulher acorrentada numa área rural teve 1,9 bilhão de cliques. O marido foi preso.

Cidade costeira a 150km de Pequim, Tangshan é descrita na imprensa estatal como um “milagre”, por ter se recuperado de um devastador terremoto em 1976 que deixou 240 mil mortos para se tornar “o berço da indústria moderna” da China.Mas recentemente a cidade de 8 milhões de habitantes ganhou má fama pelos abusos de poder ligados à política de Covid zero. Um fazendeiro foi submetido a humilhação pública ao romper o protocolo para capinar sua própria terra. Moradores tiveram que entregar as chaves de casa após serem trancados dentro. A revolta se espalhou pelas redes.

Repressão terceirizada

Medidas extremas como essas muitas vezes são entregues pelo Estado a gângsters, que em várias cidades mantêm relações funcionais com as autoridades para manter a ordem, seja com intimidação ou persuasão. Essa é a conclusão de Lynette Ong, especialista em China da Universidade de Toronto, em uma longa pesquisa sobre o tema que resultou num livro que acaba de ser lançado, “Outsourcing Repression” (terceirizando a repressão).Em conversa com jornalistas baseados em Pequim, ela contou que quando começou sua pesquisa, em 2011, muitos estudiosos duvidaram de que em um país com tamanho controle estatal as gangues pudessem ter um papel tão ativo, e, de certa forma, estatizado.

Segundo Ong, membros de gangues são pagos para executar tarefas que exigem repressão com rapidez, como a desapropriação de terras e, mais recentemente, a implementação da rigorosa política de Covid zero. Quando o presidente Xi Jinping assumiu o poder, em 2012, as gangues foram apontadas por ele como um dos males a serem combatidos. Mas, na prática, o governo central em geral faz vista grossa, diz ela, contanto que as metas sejam atingidas e a situação não saia do controle.

A terceirização da ordem pública funciona na base da repressão exercida por gangues mas também por meio de persuasão a cargo de “mediadores” sociais, gente das comunidades que sabe bem como criar e resolver conflitos, explica. A gestão pública na China tem uma fórmula difícil de decifrar, mas é muito menos monolítica do que muitos pensam, pragmático para o bem e para o mal. Ela inclui coação, recompensas e também representatividade, em forma de consultas ao público.

Suspeita de conluio

Repressão é o último recurso desejável, segundo Ong, porque o governo sabe que ela cria resistência. Nos últimos anos, métodos mais brandos têm se mostrado eficazes, e a persuasão tornou-se mais frequente que a repressão. A ideia é dar impressão de que os conflitos são resolvidos na sociedade, mas na verdade o Estado está por trás de tudo, diz ela.Não há evidências de que os agressores das mulheres no restaurante em Tangshan tenham qualquer ligação com o Estado. Mas nas denúncias que emergiram após o incidente sobre a ação das máfias, fica claro que a leniência da polícia não contribuiu para diminuir a suspeita de conluio.

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