Daniel Becker
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Conversas sobre infância, no plural: pelo bem-estar de crianças, famílias e sociedade

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Daniel Becker

Pediatra, sanitarista, palestrante e escritor. Ativista pela infância, saúde coletiva e meio ambiente.

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Uma história que ouvi semana passada ilustra bem a situação atual da infância em que se refere aos riscos do uso precoce de celulares. É quase um jogo dos sete erros.

Uma colega de trabalho divorciada tem um filho de oito anos, mas os pais se entendem bem e ambos concordam que ele não deve ter telefone nem rede social. Até aí, só boas notícias. Mas o menino fica frequentemente na casa de uma tia, que ajuda no seu cuidado. E ela, menos rígida que os pais, deixa que ele brinque um pouco com o seu celular. Um dia, ele pede a tia que entre no grupo de Whatsapp da turma, para que possa saber o que está acontecendo, o que estão planejando, do que estão brincando. Ele se sente excluído, pois a maioria da turma está no grupo.

A tia faz o que ele pede, e aos poucos os dois são surpreendidos por uma série de mensagens sobre um menino, com comentários maldosos, usando memes e imagens manipuladas para humilhá-lo, colocando seu rosto em corpos deformados ou de monstro e outras formas de humilhação. O menino fica arrasado. Nota importante: o grupo de Whatsapp não tinha nenhuma supervisão de adultos.

A família então procura a escola, que por sua vez comunica os fatos aos pais das crianças do grupo, convocando para uma reunião. Mas eles simplesmente se recusam a acreditar que seus filhos tenham enviado as mensagens. E o motivo é curioso: algumas delas foram enviadas de madrugada, horário em que seus filhos estão certamente dormindo.

Quantos erros graves numa só história?

  • Crianças de 2º ou 3º ano do fundamental com celular próprio: um erro em si. Crianças dessa idade não devem ter um smatphone.
  • Elas estão participando de um grupo de WhatsApp, que é uma forma de rede social - das quais as crianças devem ficar longe até a adolescência.
  • Além da existência do grupo, não havia supervisão de adultos. Isso é impensável. Deixar crianças soltas na selva da internet, sem um olhar adulto, é abandono digital. Os pais podem ser responsabilizados criminalmente, até porque houve bullying.
  • Crianças manipulando imagens, criando memes, quando deveriam estar brincando de carrinho, boneca, instrumentos musicais, correndo na praça ou jogando bola. E de novo, sem qualquer supervisão.
  • Crianças dormindo com celular: outra coisa impensável. Se uma criança tem um smartphone, ele deve ser removido ao menos uma hora antes de dormir e levado para o quarto dos pais.
  • Mensagens enviadas as 2:00 da manhã: os pequenos estão acordando de madrugada para jogar, ver vídeos e mandar mensagens, livremente. Estão perdendo horas preciosas de sono, essencial para sua saúde física e mental e seu aprendizado.
  • E os pais sequer acreditam: uma perigosa atitude de negação que pode comprometer seriamente a saúde de seus filhos. Sim, criança com celular dá muito trabalho, porque o aparelho gera vício. Outro motivo para não deixar ter. Mas uma vez que tenha, a supervisão e orientação são indispensáveis.

Celulares não são brinquedos, são drogas. Se você permite que um adicto à cocaína durma com seu pacotinho, ele não vai usar durante a noite?

Essa história exemplifica bem o grau de complexidade e gravidade da situação vivida pela infância após o advento dos smartphones. A crise de adoecimento mental, que leva a transtornos psiquiátricos graves, e a ascensão impressionante dos números de automutilação, depressão e suicídio tem aí uma de suas claras explicações.

Não perca a coluna do próximo domingo, quando vou escrever sobre como podemos enfrentar essa onda e trabalhar para libertar a infância da influência nefasta das redes e outros aplicativos.

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