Daniel Becker
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Conversas sobre infância, no plural: pelo bem-estar de crianças, famílias e sociedade

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Daniel Becker

Pediatra, sanitarista, palestrante e escritor. Ativista pela infância, saúde coletiva e meio ambiente.

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Nas décadas de 1960 e 1970 a Nestlé foi acusada de ser responsável pelo adoecimento e pela morte de centenas de milhares de bebês. Em países em desenvolvimento, na época miseráveis e com altas taxas de fertilidade, seus agentes de vendas (disfarçadas de “enfermeiras”) distribuíam mamadeiras e latas de leite gratuitas em maternidades, sempre lembrando às mães que o leite materno não era “forte” o bastante. Chegando em casa, os bebês sugavam as mamadeiras e começavam a fazer a previsível “confusão de bico” - uma dificuldade de sugar o seio quando se oferece mamadeira a um recém-nascido. Isso era confundido com uma recusa do seio (confirmando que o leite materno era ruim), os bebês eram desmamados do seio e as mães ofereciam mais leite em pó. Só que a segunda lata não era gratuita - custava caro, e a tendência era diluir com mais água; a água era suja e contaminada muitas vezes... e desta forma estima-se que centenas de milhares ou talvez milhões de bebês tenham adoecido ou morrido de diarreia e desnutrição. Um relatório da época ficou célebre ao divulgar essa prática com o título de “The Baby Killer – a assassina de bebês” referindo-se à empresa.

Agora um novo documento, publicado na Suíça, país sede da empresa, vem denunciar outra prática nociva para a infância. Não apenas nociva, mas perversa. Um relatório das ONGs Public Eye e Ibfan mostra que a Nestlé adiciona açúcar em produtos para bebês em países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, mas não faz o mesmo nos mercados europeus.

O caso mais impressionante é o do Mucilon, chamado de Cerelac em alguns países. O produto, a base de farinhas de cereais altamente processadas, já é inadequado em princípio para bebês, que deveriam ter contato apenas com alimentos in natura ou minimamente processados. Mas não satisfeita, a empresa adiciona açúcar: a quantidade chegou a 7,3 gramas por porção nas Filipinas, e 6,8 gramas na Nigéria, países pobres onde a obesidade infantil é crescente. Já na Suíça, França, Alemanha e Reino Unido, o Cerelac não contém açúcar adicionado. No Brasil, a maioria dos produtos da linha Mucilon tem entre 3 e 4 gramas por porção. Até o leite Ninho (chamado Nido), que no Brasil é isento de açúcar, é adoçado na maior parte dos países em desenvolvimento.

Apesar das denúncias, a indústria continua afirmando que produz alimentos saudáveis para bebês e que segue as orientações da Organização Mundial da Saúde. Ora, as diretrizes da OMS e do Ministério da Saúde, no Guia Alimentar, são de zero açúcar para crianças até 2 anos. Desnecessário e muito viciante, o açúcar escraviza o paladar dos pequenos, formando hábitos que os deixarão prontos e ávidos para consumir os produtos da empresa nas faixas etárias seguintes: achocolatados, biscoitos, iogurtes adoçados, flocos de cereal e outros venenos ultraprocessados.

É impressionante: toda uma linha de produtos feita para produzir obesidade e doença - o que contradiz notoriamente o slogan da empresa — "Nestlé faz bem”. Deveria ser o oposto — o que é reconhecido pela própria direção, em documentos vazados em 2021 companhia reconhece que mais de 60% dos alimentos e bebidas que produz não são saudáveis e que alguns "nunca serão, não importa o quanto renovarmos sua fabricação".

A adição de açúcar em países do Sul Global enquanto os produtos vendidos na Europa são mais saudáveis apresenta um duplo padrão especialmente sujo e cruel, pois vai alterar o paladar, viciar e adoecer crianças mais pobres, sem acesso a alimentos saudáveis e com dificuldades para obter cuidados em saúde para lidar com as consequências do consumo de açúcar e ultraprocessados: obesidade, diabetes, hipertensão, derrames, câncer e outros.

No Brasil e nestes países estamos vivendo o triste fenômeno da desnutrição com obesidade. Famílias estão aumentando o consumo de ultraprocessados, sempre adicionados de açúcar, mais baratos e acessíveis, e desprovidos de nutrientes essenciais e fibras, e reduzindo a ingesta de alimentos naturais e saudáveis, como feijão, arroz, legumes e verduras. Dessa forma as crianças engordam, e com a falta de nutrientes importantes e o mau padrão de microbioma resultantes, adoecem cada vez mais. Indústrias como a Nestlé, Coca Cola, Pepsi e outras estão diretamente envolvidas nesse fenômeno.

Enquanto isso, as vendas crescem cada vez mais, com os patrocínios a eventos pediátricos e as estratégias de marketing nas redes sociais, usando “blogueiras” que falam de “mãe para mãe”, forma de publicidade cada vez mais comum e eficaz, colocando a empresa no lugar de uma aliada na criação de filhos.

Eu não entregaria o cuidado com a alimentação de nenhuma criança a uma empresa com práticas como essas. Olho vivo.

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