Por Memória Globo


Existem dois grandes marcos na minha vida. O golpe e o Chico”, comenta o ator. O golpe de 1964 porque foi quando Nelson Xavier, um jovem idealista que desejava mudar o país, tornou-se um criminoso aos olhos do Estado, de um dia para o outro. Na época, ele era ator do Teatro de Arena, em São Paulo, e acha que “não tinha estrutura cultural e psicológica” para aguentar a perseguição política. Ficou perdido, decidiu se reinventar e repensar sua existência para sobreviver. Quase 40 anos depois, já com a carreira estabilizada, Nelson se deparou com este fenômeno chamado Chico Xavier – leu a biografia do médium mineiro e passou a desejar interpretá-lo no cinema. Dois anos depois, em 2010, preparava-se para protagonizar Chico Xavier – O filme, com direção de Daniel Filho, que depois transformaria a obra em minissérie de televisão.

“Eu sabia que o Chico era um médium importante, mas não tinha prestado atenção nele. Com o livro, me comovi muito e, no filme, é como se eu não tivesse que buscar o personagem, ele tomou posse de mim. Foi uma coisa tão arrebatadora, que eu chamei de invasão”, lembra ele, em entrevista ao Memória Globo. Cético e comunista, Nelson Xavier acha que, ao interpretar o personagem título em Chico Xavier – O filme, reencontrou a espiritualidade que vivenciou na infância, quando frequentava centros espíritas com sua mãe – segundo ele, esta conexão entre o mundo dos mortos e o dos vivos sempre lhe despertou interesse. “O Chico me fez sentir premiado, me fez sentir uma pessoa melhor, melhor do que eu realmente sou”, emociona-se.

EXCLUSIVO: trecho de depoimento de Nelson Xavier ao Memória Globo, em 06/07/2015, sobre o início da carreira.

EXCLUSIVO: trecho de depoimento de Nelson Xavier ao Memória Globo, em 06/07/2015, sobre o início da carreira.

Início da carreira

Nelson Agostini Xavier tinha tudo para ser advogado. Ao menos era o que sua mãe, Carolina Agostini, dona de casa, desejava. O pai, Olavo Xavier, era pintor, mas nunca chegou a conhecê-lo. Nelson cursou Direito, mas a paixão pelas artes, em especial pelo cinema mudo, foi mais forte e o estimulou a mudar de caminho profissional. Tudo começou com uma viagem para a Europa – ele ganhou uma bolsa de estudos na Itália, para fazer um curso de advocacia durante três meses. Lá, foi à Roma e Florença, teve o primeiro contato com artes plásticas clássicas e renascentistas. Ele se sensibilizou ao ponto de colocar na cabeça que precisava estudar drama e deixar o Direito para trás – só tinha que encontrar uma maneira de ganhar dinheiro com isso.

Entrou para a Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo e também para o Teatro de Arena – um dos mais importantes grupos de teatro naquela época, que tinha como princípio fazer desta arte uma ferramenta de transformação social. Lá, fez amizades com expoentes do meio artístico, sendo chamado para atuar em diversas peças, como Eles Não Usam Black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, Chapetuba Futebol Clube (1959), de Oduvaldo Vianna Filho, Gente como a Gente (1959), de Roberto Freire, e Julgamento em Novo Sol (1962), de Augusto Boal. “O teatro de Arena começou o teatro brasileiro contemporâneo. Antes de nós, era tudo muito solene, declamado. Dos novos nomes, eu me encantava com o Flavio Migliaccio, que usava o que chamamos de estilo passarinho: ele cuspia as palavras, não ficava falando com imponência. Era absolutamente revolucionário”, relembra. A formação profissional acompanhou a formação política. Por influência dos colegas do Arena, Xavier começou a ler os clássicos do marxismo. Nesse momento, Eduardo Coutinho, futuro cineasta, lhe arrumou emprego de revisor na revista Visão, onde passou a colaborar também como crítico de cinema e teatro. Durante um tempo, ganhou a vida como jornalista.

Imerso em um ambiente de ebulição cultural, tornou-se também ator de cinema, apesar de ter a convicção de que isso nunca foi sua vocação. Atuar era difícil para um rapaz tímido como ele e, naquele momento, queria mesmo era estar atrás das câmeras. Até porque, câmera, segundo ele, era algo que lhe assustava profundamente. “Eu tive muita dificuldade em começar a fazer televisão. As máquinas eram enormes, eu tinha pavor, até tremia!”, revela.

Mas não teve jeito. No dia 31 de março de 1964, tropas do Exército ocuparam as ruas das principais cidades do Brasil. No dia seguinte, uma Junta Militar tomou o poder – a sede da UNE, onde Xavier realizava ensaios periódicos para estreia de uma peça, foi incendiada. O ator se sentiu perdido: seus valores entraram em conflito, principalmente diante das dificuldades impostas pela Censura em se fazer teatro político. Dessa forma, ele intensificou sua participação no cinema. Até o final dos anos 1970, foram muitos os filmes – mais de 20 –, como O ABC do Amor (1967), de Eduardo Coutinho, Rodolfo Kuhn e Helvio Soto; Os Deuses e os Mortos (1970), de Ruy Guerra, É Simonal (1970) e A Culpa (1972), de Domingos de Oliveira; Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto; e A Queda (1978), também de Ruy Guerra, que lhe rendeu um Urso de Prata no Festival de Berlim. Por influência de amigos, neste período, Nelson Xavier começou a fazer também televisão.

De João da Silva à Lampião

Sua primeira participação na TV foi pequena, viveu o personagem Zorba, na novela Sangue e Areia (1967), de Janete Clair. Seis anos depois, conseguiu seu primeiro grande papel, em João da Silva (1973). Na novela de Jairo Bezerra, produzida pela TV Rio, e exibida pela TV Cultura, TVE e Globo; Nelson viveu um retirante nordestino, que se muda para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. A novela era um projeto educativo, com objetivo de dar dicas a emigrantes em uma grande cidade – que se encontravam na mesma situação do protagonista. Assuntos relacionados a ensino, emprego e moradia perpassavam a trama. Foi um sucesso. O ator passou a ser reconhecido nas ruas e adorado pelo público.

Cena em que o Lampião (Nelson Xavier), Maria Bonita (Tânia Alves) e o bando são fuzilados.

Cena em que o Lampião (Nelson Xavier), Maria Bonita (Tânia Alves) e o bando são fuzilados.

Em 1982, Nelson estava pronto para viver outro protagonista, desta vez, na primeira minissérie da Globo, Lampião e Maria Bonita. Dirigida por Paulo Afonso Grisolli, a minissérie se baseou nos últimos seis meses de vida de Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro mais temido do sertão, nos idos dos anos 1930. Os heróis – vividos por Xavier e Tânia Alves – foram muito bem recebidos pelo público, assim como o novo formato de dramaturgia.

Cena com Lampião (Nelson Xavier) e Maria Bonita (Tânia Alves) namorando.

Cena com Lampião (Nelson Xavier) e Maria Bonita (Tânia Alves) namorando.

A preparação para a trama foi intensa. A equipe passou um mês se locomovendo pelo interior do Nordeste para gravar as cenas externas. A ideia era mostrar lugares em que Lampião e seu bando realmente estiveram. Para dar o melhor de si, Nelson Xavier estudou a história do bandido social, que “disse ‘não’ ao sistema e levou este ‘não’ às últimas consequências”. A identificação foi tão profunda que ele acredita ter vivido uma experiência quase transcendental. “Um dia, quando estava me preparando para entrar em cena, vesti a roupa do figurino, já estava maquiado e só faltava colocar os óculos. Quando eu subi os óculos, alguma coisa me arrebatou. Eu senti que estava sendo ‘cavalo’ de uma possessão. Eu não sou médium, mas a impressão era essa, foi forte”, lembra. Momento similar, só com Chico Xavier.

Cena em que o juiz João Reis (Mário Lago) ordena a Sarmento (Ivan Cândido) a libertação de Pedro Arcanjo (Nelson Xavier), que é aclamado pelo povo.

Cena em que o juiz João Reis (Mário Lago) ordena a Sarmento (Ivan Cândido) a libertação de Pedro Arcanjo (Nelson Xavier), que é aclamado pelo povo.

Em 1985, o ator teve a oportunidade em trabalhar novamente com Paulo Afonso Grisolli. Desta vez, na minissérie Tenda dos Milagres, baseada no romance homônimo de Jorge Amado e com roteiro de Aguinaldo Silva. Nesta ocasião, Nelson era o protagonista Pedro Arcanjo, que, à beira da morte, relembra aventuras, festas, amores e sua luta para manter vivas na Bahia as culturas negra e mestiça. “Pedro Arcanjo me ensinou muito, ele era um brasileiro admirável. Fiz o trabalho com empenho, querendo acertar. A composição do personagem era mais simples. Diferente do Lampião, que era um sujeito mais posudo, o Pedro Arcanjo era frágil, mas precisava defender seus ideais com firmeza”, reflete.

Cena em que a jornalista Ana Mercedes (Tânia Alves) e Pedro Arcanjo (Nelson Xavier) se despedem.

Cena em que a jornalista Ana Mercedes (Tânia Alves) e Pedro Arcanjo (Nelson Xavier) se despedem.

A Bahia se tornou um local muito querido e, para ele, foi uma satisfação voltar ao estado para as gravações da minissérie O Pagador de Promessas (1988), dirigida por Tizuka Yamasaki, com autoria de Dias Gomes. Na ocasião, Nelson Xavier interpretou o gigolô Bonitão, que tentava seduzir a mocinha Rosa (Denise Milfont). O que o ator mais gosta de lembrar desse trabalho é, na verdade, a amizade que fez com Mário Lago, que interpretou o clérigo dom Germano. “O Mário e eu tínhamos uma coisa em comum: comíamos muito mocotó. Logo no início, demos uma volta perto do hotel e encontramos um restaurante simples, que preparava um bom mocotó. Fomos lá todos os dias e eu pude desfrutar bastante da amizade e companhia dele”, recorda.

Cena em que Pedro Arcanjo (Nelson Xavier) relembra momentos marcantes da sua trajetória e morre.

Cena em que Pedro Arcanjo (Nelson Xavier) relembra momentos marcantes da sua trajetória e morre.

Entre minisséries, Nelson Xavier também fez novelas na emissora nesse período. Interpretou, por exemplo, o ex-jagunço Zelão em Voltei Pra Você (1983), de Benedito Ruy Barbosa; e o delegado Joel, na trama de Ivani Ribeiro, Hipertensão (1986).

Cena de Pedra sobre Pedra (1992) em que Francisquinha (Arlete Salles) põe toda a delegacia a postos para qualquer eventualidade no reencontro dos inimigos Pilar (Renata Sorrah) e Murilo (Lima Duarte), mesmo sendo o delegado o seu marido, Queiroz (Nelson Xavier). Com Kleber (Cecil Thiré), Ximena (Nívea Maria), Diamantino (Ênio Gonçalves) e Arquibaldo (João Carlos Barroso).

Cena de Pedra sobre Pedra (1992) em que Francisquinha (Arlete Salles) põe toda a delegacia a postos para qualquer eventualidade no reencontro dos inimigos Pilar (Renata Sorrah) e Murilo (Lima Duarte), mesmo sendo o delegado o seu marido, Queiroz (Nelson Xavier). Com Kleber (Cecil Thiré), Ximena (Nívea Maria), Diamantino (Ênio Gonçalves) e Arquibaldo (João Carlos Barroso).

Em 1989, o ator foi convidado para trabalhar na TV Manchete, onde conheceu sua esposa, a atriz Via Negromonte. Na emissora concorrente, atuou em três tramas, incluindo Kananga do Japão, de Wilson Aguiar Filho e dirigida por Tizuka Yamasaki; e Ana Raio e Zé Trovão (1990), novela de Marcos Caruso, com direção de Jayme Monjardim.Em 1992, Xavier voltou para a Globo para viver o delegado Francisco Queiroz, em Pedra sobre Pedra, de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares. Logo depois, interpretou o comerciante Norberto, dono da venda onde os personagens faziam compras ou paravam para uma bebida, na novela Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa. Ele também interpretou o padre Bento, na segunda versão de Irmãos Coragem (1995), dirigida por Luiz Fernando Carvalho, quem considera um grande colega de trabalho em sua carreira. “Ele é muito criativo, e permite que o ator crie e brinque em cima do personagem”, comenta.

Espiritualidade

Em 2001, Nelson Xavier teve a oportunidade de interpretar um mestre espiritual de uma sociedade alternativa, em Goiás. Purunam era um médico que se interessou por medicina alternativa e se tornou o principal conselheiro da protagonista Cristal (Sandy), na novela Estrela-Guia, de Ana Maria Moretzsohn. “Foi bonitinho viver o Purunam, principalmente porque eu acreditava no que ele pregava, mesmo sem ter ainda me tornado simpático a cultura védica, como aconteceu depois. Tinham cenas com diálogos enormes, mas não tive dificuldades, veio fácil para mim”, analisa.

Com Chico Xavier, em 2010, o ator voltou a ter uma experiência sensível, na pele do médium mineiro, que transformou sua vida. Para Nelson, Chico Xavier desempenhou bem sua missão na terra, como um apóstolo. “Acredito que toda geração tem um papel a cumprir. O problema é cumprir ou trair. Eu acho que a minha geração quis mudar o Brasil e não conseguiu e é lamentável. Mas o trabalho do ator também pode mudar as pessoas, ainda que em pequena escala”, acredita.

Joia Rara: Cena em que Franz (Bruno Gagliasso) se despede dos amigos que fez nos Himalaias, os monges budistas Ananda Rinpoche (Nelson Xavier), Sonan (Caio Blat), Tempa (Ângelo Antônio) e Jampa (Fabio Yoshihara).

Joia Rara: Cena em que Franz (Bruno Gagliasso) se despede dos amigos que fez nos Himalaias, os monges budistas Ananda Rinpoche (Nelson Xavier), Sonan (Caio Blat), Tempa (Ângelo Antônio) e Jampa (Fabio Yoshihara).

A espiritualidade adquirida com os papéis anteriores possibilitou que interpretasse Ananda, líder espiritual budista que ajuda o mocinho Franz Hauser (Bruno Gagliasso) a sobreviver após uma avalanche no Himalaia, em Joia Rara (2013). A trama de Duca Rachid e Thelma Guedes se passava no Brasil e no Nepal. Os atores passaram 15 dias filmando em Katmandu. Nelson gostou da experiência: “Eu vi muita pobreza nas ruas. Mas as pessoas são muito serenas e o budismo proporciona isso”, analisa. Para compor o personagem, o ator buscou incorporar essa serenidade e transmitir, em suas falas, a generosidade e o amor ao próximo.

Depois de 40 anos de carreira, Nelson Xavier falou ao Memória Globo que “o verdadeiro artista cria uma linguagem própria. E, depois de tantos anos pensando que não tinha vocação para ser ator, hoje eu acho que tenho isso, consegui desenvolver essa linguagem”.

O ator e diretor Nelson Xavier faleceu no dia 10 de maio de 2017, na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, de insuficiência respiratória em decorrência de um câncer. Ele tinha 75 anos e lutava contra a doença há 14 anos. Sua última aparição pública foi na exibição do longa-metragem Comeback durante o Festival do Rio em 2017. No drama de Erico Rassi, Nelson Xavier interpretou Amaro, um ex-pistoleiro que se refugia em uma pequena cidade de Goiás após sua aposentadoria.

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