• Eduardo do Valle (@duduvalle)
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Um livro de dois começos (Foto: divulgação)

Um livro de dois começos (Foto: divulgação)

Itamar Vieira Júnior tinha apenas 16 anos quando experimentou o silêncio pela primeira vez. Aficionado por literatura e sob influência da geração de 1930-1945, o jovem esboçou o que viria a se tornar Torto Arado, seu celebrado romance de estreia, décadas mais tarde. Quando a família encontrou seu manuscrito, o desencorajou: “Achavam que era perda de tempo”, conta. À desilusão veio a reclusão e a interrupção da escrita. O texto original acabou perdido em uma das tantas casas da família: “Mudávamos muito. O aluguel subia e precisávamos encontrar outro lugar”.

Aos 41, ele relembra com risadas das idas e vindas na escrita e da perda dos manuscritos: “Certamente é uma obra muito diferente. Hoje agradeço, penso 'que bom que eu perdi', acho que não deveria valer muita coisa”. Mais que modéstia, é a maturidade do autor brasileiro de ficção mais lido do momento no país.

Não há nada de repentino em seu sucesso. Antes de atingir o topo das listas de venda, Itamar já era autor de dois livros de contos: Dias e A Oração do Carrasco. Pelo último, chegou a ser indicado para o Prêmio Jabuti. Mas a “falta de trânsito” no mercado editorial brasileiro o faria continuar inscrevendo suas obras em premiações, a melhor chance de conseguir uma editora. Com Torto Arado, concluído em 2018, ele “não sabia o que fazer”. Acabou enviando a obra anonimamente e “sem nenhuma pretensão” para o Prêmio LeYa. A resposta veio meses mais tarde do presidente do júri e vencedor do Prêmio Camões, Manuel Alegre: "Quando liguei para minha mãe para falar do LeYa, que é uma premiação de cem mil euros, ela achou que era trote, que o telefonema era uma mentira [risos]".

Um livro de dois começos: “Nem todos têm direito a voz. Somente alguns encontram representação na vida pública.” (Foto: divulgação)

Um livro de dois começos: “Nem todos têm direito a voz. Somente alguns encontram representação na vida pública.” (Foto: divulgação)

Desse feito em Portugal até que o livro se tornasse um dos mais comentados no Brasil  e passasse a ser o título nacional de não-ficção mais vendido do país (conforme o ranking da Publish News), haveria mais um longo caminho. O Prêmio LeYa despertou o interesse das editoras de imediato, e ele fechou com a Todavia, que trocou a capa original portuguesa, na qual dois contornos de rostos femininos estão sobrepostos a uma imagem de pôr do sol, por uma ilustração de Linoca Souza: duas mulheres negras empunhando ramos de espadas-de-São-Jorge, concepção a partir de um retrato do fotógrafo italiano Giovanni Marrozzini. Sem saber, usou a mesma referência sugerida por Itamar para a capa portuguesa.

A receptividade foi boa. Em 2019, o livro ficou em terceiro lugar na lista da revista especializada Quatro Cinco Um, entre os melhores de ficção. Ao longo da quarentena, se tornou objeto de culto. Restrito a encontros on-line com fãs, Itamar acabou recebendo deles bordados e pinturas sobre o livro. Houve até quem tatuasse o desenho da capa. E vieram mais prêmios, o Jabuti em 26 de novembro e o Oceanos em 18 de dezembro. O sucesso, que estava crescendo, acelerou. Das oito reimpressões até agora, três foram feitas de novembro ao início de janeiro. Ao todo, são 33.000 exemplares. E então cresceu a curiosidade sobre uma outra história, a do autor.

Itamar Vieira Júnior é geógrafo e doutor em estudos étnicos africanos. Há 15 anos trabalha no Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, entre comunidades rurais, indígenas e quilombolas. Através de várias histórias que conheceu, veio a inspiração para criar as protagonistas do livro: irmãs nascidas em uma fazenda de trabalhadores servis, em meio à fé e à luta, que, fascinadas pelo brilho de uma velha faca de sua avó, levam a lâmina à boca. Corta-se uma língua. Perde-se uma voz – narrativa, é claro, mas, principalmente, metafórica: "Nem todos têm o direito a voz. Por mais que nasçamos com essa capacidade de fala, somente alguns segmentos encontram representação na vida pública".

A história se passa na Bahia, entre os cursos dos rios Utinga e Santo Antônio. Terra e cultura, religião e fantasia, jacus e juritis, chupins e xanãs. Os conflitos de sangue aumentam ao longo do livro. “A vida me deu essa possibilidade de entender esse campo tão vivo que ainda coexiste hoje com esse Brasil urbano, cosmopolita e que muitos pensam não ser mais assim.”

A única personagem real do livro é Santa Rita Pescadeira, a narradora do último ato e entidade do jarê, que Itamar via desaparecer na tradição oral da Chapada Diamantina: "Isso para mim foi um achado, porque me deu a possibilidade de trabalhar, de criar dentro dessa personagem, de inventar as coisas que ela diz, que ela vive, as danças que ela pratica no jarê". É dela a visão sobrenatural que decifra os silenciamentos presentes em toda a história e fora dela, passado, presente e futuro, num caldo que veste a fantasia da história com a roupagem realista que transferiu de sua experiência para a obra.

"Trabalhei com educação no campo durante muitos anos, com assistência técnica para trabalhadores rurais, com documentação de trabalhadoras mulheres que eu acompanhei por muito tempo. A força que as camponesas têm despertou muita coisa da literatura em meu projeto literário", ele conta. "Se tivesse seguido apenas o caminho da literatura, talvez estivesse falando sobre meu umbigo, fazendo autoficção. Meu propósito é justamente sair dessa região e falar sobre o outro. Isso é o mais importante."

Mais que o cenário do livro, a Fazenda Água Negra representa a estrutura latifundiária brasileira – a mesma que ele lia nas obras de Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos. Zeca Chapéu Grande, pai de Bibiana e Belonísia, é o descendente de cativos em condições análogas à escravidão, como tantos que cruzaram o caminho do autor. “É um recorte de que a violência no campo ainda está longe de ser mitigada.” De fato, dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, dão conta de um aumento de 23% no número de conflitos no campo em 2019 com relação a 2018. Foram 1.833 conflitos, a maior quantidade dos últimos 15 anos. Em sua trajetória no campo, o próprio Itamar já viu lideranças camponesas com quem se reunia e trabalhava serem assassinadas.

Atualmente, o autor escreve mais devagar. Segue no Incra, onde, afirma, o livro foi bem recebido ("pelo menos pelos colegas"). Para a próxima obra, esboça uma história dividida entre o campo e a cidade, num lugar que pertence à Igreja Católica, com trabalhadores presentes há gerações. Novamente, o homem e a terra. A literatura e a geografia. O paradoxo da fantasia que manda um recado claro à realidade, de uma voz que não será calada novamente. "Todo artista captura um testemunho do seu tempo e talvez o testemunho do meu seja que a gente precisa combater de frente toda a nossa desigualdade, tudo aquilo que permite que pessoas como nós continuem vivendo uma exploração inaceitável. O tempo da conciliação acabou."