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      Inesperada prisão de Gachot abriu as portas da Fórmula 1 para Schumacher

      Série relembra os 25 anos da estreia do maior campeão da categoria. No capítulo final, uma entrevista com o piloto que foi preso e abriu espaço para estreia do alemão

      header livio oricchio (Foto: Editoria de Arte)
      Bertrand Gachot, ex-piloto de Fórmula 1 (Foto: Getty Images)Gachot, ex-piloto de F1 (Foto: Getty Images)

      Nem todos que já sexta-feira vão acompanhar os treinos livres do GP da Bélgica, na volta da F1 a suas atividades, no Circuito Spa-Francorchamps, sabem quanta história a prova começou a escrever há 25 anos. Pode-se dizer mudou os rumos da F1. O pouco conhecido Michael Schumacher estreou na competição e assombrou o mundo do automobilismo.

      No terceiro e último capítulo da série que lembra o tumultuado início de carreira do piloto sete vezes campeão do mundo o foco é o piloto nascido em Luxemburgo, de nacionalidades francesas e belga Bertrand Gachot. Por uma daquelas coincidências únicas foi a sua prisão que possibilitou Schumacher expor o seu imenso talento e a sua personalidade bastante particular, em que tudo se justifica com a vitória.


      + CAPÍTULO 1: Há 25 anos, Schumacher começou a escrever sua fantástica história na F1
      + CAPÍTULO 2: Depois de treinos em Spa, houve caça a Schumi. E usaram todas as armas

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      Terceiro capítulo

      Michael Schumacher na Jordan (Foto: Divulgação)Michael Schumacher na Jordan (Foto: Divulgação)

      Hyde Park Corner. Um ponto no centro de Londres, entre o Hyde Park e o Green Park, onde se encontra o Palácio de Buckingham, residência oficial da rainha Elizabeth. Bertrand Gachot não poderia ter escolhido um local pior para se envolver numa discussão de trânsito, naquele frio dezembro de 1990.

      O que ele nunca imaginou, conforme disse nesta entrevista exclusiva ao GloboEsporte.com, é que as consequências do ocorrido a seguir mudariam a história da F1. Gachot vestia terno, gravata e dirigia o carro da namorada até o escritório de uma empresa, disposta, inicialmente, a patrocinar sua carreira de piloto na F1.

      “Alguns carros atrás de mim estava Eddie Jordan, o dono da equipe que eu correria em 1991, meu amigo e empresário. Íamos discutir algo importante para mim e o time.”

      De repente, um mal entendido com um motorista de táxi, apesar de os carros não chegarem a bater, fez com que o cidadão perdesse o controle e corresse na direção do automóvel do francês. “Ele abriu a porta do meu carro e me puxou pela gravata. Minha namorada estava do meu lado e trazia na bolsa uma pequena garrafa de gás CS (lacrimogêneo). Eu a peguei e procurei borrifar na cara dele, só que o gás saiu para todo lado e me atingiu também”, contou o hoje bem-sucedido empresário Gachot, de 53 anos.

      Na sua visão, foi o melhor que poderia acontecer, “pois ninguém brigou com ninguém e 15 minutos depois cada um tomou seu rumo, apenas com os olhos cheios de lágrima”. Mas a justiça inglesa não entendeu da mesma forma. O motorista de táxi anotou a chapa do carro e prestou queixa na polícia. Gachot foi chamado e um processo, aberto.

      Michael Schumacher em 1991 (Foto: Divulgação)Michael Schumacher estreou em 1991 na Jordan no lugar de Bertrand Gachot (Foto: Divulgação)



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      punição desproporcional


      Oito meses mais tarde, no dia 14 e agosto de 1991, o piloto que disputava a temporada de F1 pela estreante equipe Jordan e havia sido, surpreendentemente, o quinto colocado no GP do Canadá, estava na frente do juiz, num tribunal inglês. E ouviu a dura sentença: “18 meses de prisão por causa da agressão ao motorista, que se apresentou com as mãos livres e Gachot com uma arma, e mais 6 meses por posse da garrafa de gás CS, proibido na Inglaterra”.

      Três dias antes registrara a melhor volta no GP da Hungria e se aprontava para disputar o GP da Bélgica, onde passou a infância, animado com o fato de o modelo J191-Ford da Jordan ser, possivelmente, rápido no traçado de Spa-Francorchamps, com suas curvas de alta velocidade.

      O advogado de Gachot ligou para Eddie Jordan e deu a notícia que ninguém imaginava ser possível: o piloto passaria dois anos na cadeira por algo pouco relevante. Nesse instante, Jordan saiu à procura de um substituto para correr já na semana seguinte. Como o diretor esportivo da Mercedes, Jochen Neerpasch, e Willli Weber, empresário de um pouco conhecido jovem alemão de 22 anos, chamado Michel Schumacher, planejavam vê-lo na F1, o negócio andou para a frente, apesar da resistência inicial de Jordan.

      Mas quando o irlandês soube que receberia da Mercedes 150 mil libras por corrida e Weber vendeu o piloto como um especialista no traçado de Spa, uma grande mentira, Jordan imediatamente concordou com os termos. Schumacher fez um treino de 20 voltas no circuito menor de Silverstone, para saber o que era um carro de F1, e embarcou para a Bélgica. Daria início à carreira mais extraordinária de conquistas da história da F1. Obteve, por exemplo, impressionantes sete títulos mundiais.

      Bertrand Gachot, ex-piloto de Fórmula 1 (Foto: Getty Images)Bertrand Gachot, ex-piloto de Fórmula 1 (Foto: Getty Images)




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      vida de cão


      A Gachot restou seguir algemado para uma das prisões mais severas da Inglaterra, Brixton, em Londres. Ele não se importa em abordar o tema e tampouco diz atingi-lo, apesar da desumana condição vivida nas primeiras semanas. “Aquilo foi ridículo, colocar uma pessoa sem antecedente criminal algum na cadeia, por dois anos. Eu apelei e consegui sair em dois meses. Mas uma única noite é muito, acredite.”

      Os primeiros dias foram os mais difíceis. “Você não pode imaginar o que passei. Ficávamos numa cela sem banheiro, mesa para comer, 23 horas por dia, não tínhamos sequer o controle da luz. Para ser sincero, eu descobri como o seu humano se adapta a tudo e os prisioneiros não são más pessoas como sempre nos passam a ideia. Descobri coisas que nunca imaginei”, disse Gachot, esboçando um sorriso.

      Para sua felicidade, algumas semanas mais tarde foi transferido para outra penitenciaria, uma espécie de prisão agrícola. “Nós trabalhávamos a terra, havia bastante liberdade. E eu também não sabia da existência desse tipo de cadeia.”

      Curiosamente, não pensava em F1. “Eu treinava bastante a parte física, dizia a mim mesmo que a hora que saísse talvez voltasse a pilotar, mas não era algo que me tirava o sono.”

      O piloto faz questão de contar algumas experiências vividas na primeira prisão e o comportamento de Jordan, ao saber do ocorrido. “O cara que tomava conta da minha área era terrível. Ele tinha o hábito de se aproximar da minha cela, colocar a chave na porta, para me criar a ilusão de que eu sairia, e dizia: 'Não, não vai sair, vai ficar aí mais tempo'. E saia fazendo o som dos carros de F1. Ele tinha certeza de que me atingia com aquilo. Mal sabia que não era o caso.”

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      voz do diabo


      Como não tinha acesso a muita coisa em Brixton, Gachot não acompanhou o GP da Bélgica, prova que Schumacher estreou na F1 com seu carro. “O mesmo cidadão ridículo que procurava me atormentar chegou na porta da cela e disse que a minha equipe havia descoberto um piloto alemão muito melhor do que eu e pediram para me manter mais tempo na prisão, não me queriam mais lá.”

      O piloto leu nos jornais no dia seguinte como havia sido o GP da Bélgica. E recebeu uma carta do então companheiro na Jordan, o italiano Andrea De Cesaris. “Nos dávamos muito bem, nos tornamos amigos. Andrea me escreveu dizendo para não me preocupar. Na próxima etapa em que correria com Schumacher na Jordan iria vencer o alemão. Mas Schumacher não competiria mais pela Jordan. Deram um jeito de levá-lo para a Benetton.”

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      mui amigo

      Eddie Jordan em 1991 (Foto: Getty Images)Eddie Jordan em 1991 (Foto: Getty Images)

      Agora a reação de Jordan a sua prisão. “Eu fui um pode expiatório para o juiz que me aplicou uma pena de dois anos de prisão. Ele desejava publicidade para si também. E Eddie, até então meu amigo e empresário, não ajudou em nada. Ao contrário. Argumentou com meu advogado que existia no contrato uma cláusula que eu não poderia me envolver em situações que prejudicassem a imagem da Jordan. E passou a usar o que se passou para tentar tirar mais dinheiro de mim. Se comportou muito mal comigo.”

      Gachot sabia que o orçamento da Jordan não lhe permitiria terminar a temporada, precisava de mais dinheiro para completar o ano de estreia na F1. Mas comentou não ser o caminho mais ético para atingir seus objetivos.

      Tanto Jordan quanto Gachot se tornaram ricos. Jordan conseguiu fazer a escuderia crescer a vendeu muito bem no fim de 2015. Atualmente Jordan tem negócio em vários ramos e é o apresentador do famoso programa de TV Top Gear na Inglaterra.

      Gachot tornou-se proprietário do energético Hype em 2000, com participação no mercado de 40 países. “Hoje sou amigo novamente de Eddie, afinal já faz 25 anos que aquilo tudo aconteceu”, disse, rindo, no seu iate no porto de Mônaco, local da entrevista que, depois, virou um longo bate papo sobre F1.

      O apelo do advogado de Gachot deu resultado. Um novo tribunal o deu liberdade no dia 15 de outubro de 1991, terça-feira da semana do GP do Japão. “Eu saí da prisão e reuni os amigos para celebrar na embaixada da França na Inglaterra. Mas naquela mesma noite eu embarquei para Tóquio, sem passar em casa, pois planejava de alguma forma disputar a corrida”, conta o piloto.

      “Sabia que o Alessandro Zanardi havia fechado com a Jordan para correr as três últimas etapas, Espanha, Japão e Austrália. Obviamente Jordan me explicou tudo e surgiu a possibilidade de eu competir pela Larousse na prova seguinte, a de encerramento do calendário, em Adelaide, na Austrália”, disse o francês. “O titular Eric Bernard havia fraturado a perna num acidente e eu fiquei com a vaga. Mas tínhamos de passar pela pré-classificação e eles não dispunham de recursos, o carro era lento.”

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      o alemão, um gentleman

      Michael Schumacher em 1991 (Foto: Getty Images)Michael Schumacher em 1991 (Foto: Getty Images)

      Em Suzuka, aconteceu o inevitável encontro com Schumacher. Gachot lembra: “Quando lhe disseram que eu estava no autódromo, imediatamente foi me procurar, um gentleman. Conversamos. Ele disse lamentar o ocorrido comigo, considerava um absurdo me mandarem para a prisão por causa do que fiz e perguntou se poderia fazer algo por mim, pois sabia que eu procurava uma equipe. Colocou-se à disposição. Nos encontramos em várias outras ocasiões, sempre nesse clima de amizade.”

      Para o francês, Schumacher pertencia a outra classe de pilotos. “Assisti a uma corrida em Barcelona, na chuva, em 1996 (com Ferrari), e fiquei impressionado, o que era aquilo?” Foi a primeira vitória do alemão no time italiano. “Michael foi capaz, tinha liderança para reunir ao seu redor alguns dos melhores profissionais da F1. Criou uma estrutura vencedora. E ele fazia a diferença, depois, como piloto. Isso explica os cinco títulos seguidos (de 2000 a 2004, na Ferrari).

      Empreendedor por natureza, Gachot partiu para o projeto de uma escuderia própria na F1. Se associou ao inglês Keith Wiggings e criou a Pacific Racing, presente no Mundial de 1994 e 1995. Sem os investidores necessários, a saída foi Gachot se concentrar nos seus negócios. A base em casa foi muito boa, como diz. “Meu pai era representante francês na Comissão Europeia, minha mãe, alemã. Eu nasci em Luxemburgo e cresci na Bélgica. Mas minha nacionalidade é francesa.”

      Quem pensa que Gachot foi um piloto de pouca expressão se engana, na sua própria avaliação. “Venci as 24 Horas de Le Mans no mesmo ano em que tudo aconteceu na minha vida, 1991, com Mazda, tendo como companheiros Johnny Herbert (inglês) e Volker Weidler (alemão).”

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      faltou correr em spa


      Da F1 Gachot diz trazer uma certa mágoa, a sensação de não ter feito o que poderia. “Eu disse a Gary (Anderson), depois de ter estabelecido a melhor volta na Hungria, antes de ser preso, que finalmente havíamos encontrado o caminho para fazer do J191 um carro capaz de andar lá na frente. Eu afirmei ao Gary que largaria na pole em Spa. Sinto, muito, nunca mais ter pilotado aquele carro.”

      Sua paixão pela F1 segue intacta, ainda que a veja, agora, de outra forma, como empresário. Gachot patrocina a Force India, expõe a marca do seu energético. “A Force India é, em essência, a escuderia que eu corri em 1991, a Jordan, como outro nome e outra realidade, lógico. Ocupa o mesmo lugar, na porta de Silverstone”, diz, rindo.

      “Eles precisaram de uma hora e meia para me explicar o carro, em uma das provas em que estive. Imagine a complexidade dessa tecnologia. No meu tempo não havia nada disso. Mas a F1 segue sendo a melhor plataforma para você expor uma marca como a nossa que atua no mercado mundial, por se deslocar por todos os continentes.”

      Gachot tem ainda a chance de levar adiante seus ensinamentos de piloto ao filho, de 16 anos, que compete na F-Ford alemã. “Eu só respondo o que ele me pergunta. Não interfiro em nada. Ele quer chegar na F1. Apenas digo que ele terá de trabalhar muito, especialmente hoje, para se tornar piloto de F1. Torço por ele.”